Londres (1970)

LONDRES - Um abraço pelo ferro na boneca Moraes & Galvão + Paulinho Boca de Cantor. O disco, como de hábito, não é bom. Mas é ótimo, em compensação. Porque a gente vê que a turma é legal. Sob esse aspecto (talvez mais do que sob qualquer outro) se parece com os discos dos velhos baianos na fase tropicalista. O disco de Gil ainda vá lá, mas aquele meu era terrível. E, no entanto, ambos eram ótimos. Na verdade, eu adorei o disco dos Novos Baianos, fiquei emocionado quando ouvi. Não disse logo de cara pra o pessoal aí não querer gozar com minha cara de baiano velho etc., porque eu estou por dentro de muita coisa que a moçada não está; janelas tão abertas, meu coração via transplante no país da serenata, uma menina sentada no chão na casa de Pituba sem blusa, com um trapinho de calça Lee amarrado no tronco pra cobrir os bicos dos peitos, Rodrigo comandando o Brasa, o Brasa, Seu Catarino, não comandando nada, a turma repentina do Aplicação, a aplicação, façamos terra. Se alguém me disser que o disco é ruim, tá legal, eu também tou entendendo e os caras também tão entendendo desse ruim. Deixe comigo e eles, a gente não está querendo nem saber. Ou melhor, deixem comigo que eu deixo com eles: se virem, cuidado pra não se machucarem, mandem brasa etc. f. na b.

Um abraço especial em Baby Consuelo — sim, por que não? —, pela curtição de véu e grinalda.

Um abraço sempre de novo em Paulinho da Viola cantando, um abraço pelo seu sinal. Paulinho é um grande amor. Deve ser a pessoa de quem eu mais gosto no Rio de Janeiro que passou em minha vida. O sinal está claro, límpido, luminoso. Embora fechado, porque não há outro jeito. É um disco solar. Dá fossa, mas ele e eu não temos medo de trocadilho. Também isso podem deixar conosco. Quem sabe...

Um abraço em Gonzaga Júnior pela festa e pela erva. Pra o velho Lua eu não posso e não preciso dizer nada: continuo ouvindo e aprendendo. O milho pra o céu apontando, o feijão pelo chão enramando. O cristão tem de andar a pé. Canaã? Belo é o Recife pegando fogo na pisada do Maracatu.

Um abraço em Julinho Bressane pelo que ele fez: matou a família e foi ao cinema. O cinema é um bom lugar pra se ir. Chorei pra burro. Fui a Paris pra ver filmes porque em Londres não temos muitos. Vi Era uma vez no Oeste e Satyricon e As aventuras de Juan Tin Tin (Itália, Itália e Cuba) e fiquei meio cabreado: acho que já estou velho pra gostar de ver figuras mexendo na tela, pensei. O fato é que o cinema me desencantou. Um dia o Caca Diegues me chamou pra ir ver um filme brasileiro na cinemateca, uma sessão especial. Aí já começou com um close de Márcia Rodrigues, linda, e outro da Renata Sorrah, que eu amo. Perdidas de amor, era visível. Depois o estilo livre, ligando os pontos da violência cotidiana brasileira às avessas. Um filme lírico. E as meninas ali mesmo e Antero. O filme parece que limpou a tela de todo vício e me fez gostar de estar no cinema de novo. Não sei por quê: objetivamente, Matou a família e foi ao cinema é um filme interessante, com uma estrutura nova etc., mas ele me pegou muito mais do que isso. Talvez Renata. Talvez tudo. A escolha daquela música do Roberto, aquela que a gente sempre soube e não se lembra. Os franceses críticos de cinema e selecionadores de festival que estavam na sala não pareceram ter entendido nada. O nosso amor é puro, espero nunca acabar.

Caetano Veloso.

O PASQUIM, 4 DE JUNHO DE 1970.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.

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