Lurdinha (11/09/2011)
Paulinha Lavigne, que foi minha mulher e é minha empresária (portanto tem de me conhecer um bocado), riu muito ao me ler aqui contando que quase colaborei com a luta armada. Mesmo Dedé, que era minha mulher no tempo em que essas coisas se deram (e que é minha amiga queridíssima), poderá ter se surpreendido: não me lembro de ter dito a ela sobre o esboço de combinação que fiz com Lurdinha de dar apoio logístico à guerrilha. Ambas devem estranhar que um banana de pijama como eu, que, como disse o brilhante Lobão numa pocket-palestra, toca violão como quem está tomando um cafezinho (embora eu não tome cafezinho), pudesse estar ligado, ainda que remotamente, a atos de violenta bravura.
Lurdinha era minha colega de sala na faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. A turma era muito pequena. Os professores não despertavam entusiasmo. O interesse em ir à faculdade se centrava nos encontros com Wladimir Carvalho e Fernando Kraichete e nas conversas com Rose Foly no Diretório Acadêmico. Lurdinha, no entanto, com sua genuína vocação para a disciplina, assistia às aulas e executava as tarefas curriculares com pontualidade. Várias vezes ela foi me buscar em casa, fazendo arrancarem-me da cama às pressas, para que eu não perdesse uma prova. Ela era comunista e olhava com benevolência meu jeito boêmio.
Wladimir também era comunista. Todos os meus amigos na faculdade — e fora dela — eram de esquerda. Nenhum iria ao Cine Roma assistir a um show de rock de Raulzito e os Panteras. Íamos ao clube de cinema, ao MAM, ao Teatro dos Novos, aos concertos da Reitoria, ouvíamos João Gilberto e Thelonious Monk. Rock era lixo e anátema. Carlos Nelson Coutinho era nosso contemporâneo na faculdade e já escrevia artigos sérios: era o lado teórico do movimento que crescia no período pós-Jânio e pré-ditadura. Quando surgia uma discussão sobre se Luís Carlos Maciel escrever um livro sobre Kafka e Beckett representava alienação, eu sempre me posicionava do lado dos malucos: embora só tivesse lido “A metamorfose” e os contos “Na colônia penal” e “O faquir” (estes, na revista “Senhor”) — e nada de Beckett — eu tendia a gostar dos artistas insubmissos a programas que deveriam servir a alguma “ditadura do proletariado”. Apesar da minha teimosia em não entrar em grupo nenhum, eu era tratado com simpatia. O Centro Popular de Cultura da UNE local me pediu que escrevesse um samba para um bloco de carnaval engajado. Fiz “Samba em paz” — que veio a ser gravado, anos depois, por Elis.
O que mais impressionava em Lurdinha era sua sobriedade. Ela não exibia retoricamente a força de suas convicções: seu despojamento pessoal, sua lealdade inabalável, sua decisão de não perder tempo com discussões decorativas é que mostravam a firmeza de sua orientação política.
Quando nos jogamos no tropicalismo, Lurdinha tinha se casado com o pintor Humberto Vellame e se mudado para São Paulo. Entre móveis de plástico transparente e manequins de fibra de vidro, tínhamos, Dedé e eu, em nossa sala, um quadro de Vellame. O casal nos visitava de vez em quando. O tropicalismo tinha uma fome estética de violência que se traduzia em imagens fortes nas letras, sons elétricos e distorcidos nas bases, aproximação com a vanguarda radical da música clássica, contraste gritante com a bossa nova. Isso correspondia a uma impaciência com a inatividade dos comunistas sob ordens de Moscou e a uma identificação com a nascente dissidência liderada por Marighella. Faz pouco Juca Ferreira me alertou para o fato de que não toda a esquerda era hostil ao tropicalismo: dentre a turma da Lubelu (Liberdade e Luta) havia quem gostasse do nosso estilo. Lurdinha — que nunca fez coro às reações antipáticas ao nosso trabalho por parte da esquerda — sentia a mesma impaciência que eu. Só que ela nunca fora nem boêmia nem retórica: seu sentimento tinha de se expressar em ação. Quando ela me pediu um eventual apoio logístico, acedi de imediato.
Em “Verdade Tropical” digo que se a nossa revolução de esquerda tivesse vencido talvez daí saísse apenas mais um gigante com câimbras. Mas Marighella foi morto numa rua de São Paulo antes que isso se tornasse ao menos provável. E pela mão de Sérgio Fleury, o truculento policial que, em entrevista à revista “Realidade” nos anos 70, disse da “Baixinha” que estivera sob tortura: “Maria de Lourdes do Rego Mello: Está aí uma das moças mais corajosas que vi na minha vida. De uma lealdade e segurança impressionantes. Nunca se deixou trair nos interrogatórios, nunca arrancamos dela uma palavra que levasse ao ‘Velho’ (Joaquim Câmara Ferreira, o ‘Toledo’). Foi seguida durante 60 dias, filmada, fotografada, até que foi presa. Essa moça recusou ir para o Chile, na troca com um embaixador. Quando soube disso, eu a chamei até minha sala. Disse: ‘Olha aqui, Baixinha, você mentiu para mim o tempo todo. De tudo quanto disse, 99% era mentira. Mas gostei de sua atitude. Aceito as suas mentiras. Agora deixo você em paz.’”
Desde que fui preso e exilado, eu não tinha notícias de Lurdinha. Temia que ela não estivesse viva. Foi o blog “Obra em progresso”, da feitura do Zii e Zie, quem a trouxe de volta. Um dos comentaristas, Julio, tinha o sobrenome Vellame. Perguntei se ele era parente de Humberto. Ele respondeu: “Sou filho de Lurdinha, Caetano.” Assim, a internet de Hermano Vianna me reaproximou da Maria Quitéria da guerrilha urbana.
Caetano Veloso.
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