Mentira (12/02/2012)
Tarde demais para lamentar a imperdoável desatenção do governador Jacques Wagner aos problemas que levaram à greve da Polícia Militar da Bahia. Jânio de Freitas estava certo ao escrever que ao governador cabe a maior parte da responsabilidade pela situação. Hoje (quinta-feira) de manhã vi um PM dizer na televisão que as conversas telefônicas entre ele e o líder do motim (“Eu vou queimar viaturas, eu vou queimar duas carretas na Rio-Bahia”; “Fecha a BR!”, respondia-lhe o comandante) tinham sido uma encenação de quem já sabia que estava sendo monitorado. Mas a invasão, na Paralela, de dois ônibus por homens armados e encapuzados é fato indiscutível — e que se afina com o tom desses telefonemas. O clima de terror que os grevistas quiseram instaurar deixou o Rio Vermelho deserto no sábado à noite: é como se a Lapa tivesse ficado deserta num fim de semana. Os assassinatos de moradores de rua continuam inexplicados.
Wagner era sindicalista. É inacreditável que ele diga que foi pego de surpresa. Nós todos já sabíamos o que tinha se passado no Maranhão e no Ceará, antes de sua viagem a Cuba. Ele deverá ser sempre criticado por não ter sido capaz de negociar e, uma vez o conflito deflagrado, não ter tido a força de personalidade para lembrar aos envolvidos que há instituições neste país.
Quando Lula chegou à presidência, chamou Luiz Eduardo Soares para projetar uma política nacional de segurança. Os lulistas nunca explicaram como e por que Soares foi despachado sem ter tido tempo sequer de testar um esboço de suas ideias. Mas já ouvi cem vezes que José Dirceu usou toda a sua energia para livrar o nascente governo do PT do estorvo que seria um homem íntegro e informado trazendo racionalidade para o enfrentamento da questão da segurança pública. Nada nem remotamente semelhante foi posto no lugar. O misto de aparelhamento com fisiologismo não permitiria uma experiência ousada. Ninguém está certo de que as decisões de Luiz Eduardo seriam bem-sucedidas. Mas é seguro que o que se tem aí não poderia ser piorado.
Ouço vozes populares iradas com o governador e simpáticas à greve. São vozes de pessoas íntimas minhas, e também de desconhecidos que escrevem cartas às redações ou que simplesmente se manifestam em diálogos casuais na rua. São pessoas que acham absurdo os salários dos policiais que arriscam a vida para encarar cidades tomadas por marginais. Muitas xingam os parlamentares que votam aumentos de seus próprios ganhos, quando sabemos que eles são todos bandidos e corruptos. Claro que a resposta é que não só não é verdade que todos os legisladores sejam bandidos como também que se sabe que há policiais que o são. As cenas na Assembleia Legislativa, com mulheres e filhos de policiais nas fotos, têm a alegria espontânea das greves do tempo de “Eles não usam black-tie”. Mas é impossível não lembrar o conceito de escudo humano, num tempo em que se sabe que crianças se explodiram na Palestina Ocupada (que é como os árabes chamam o Estado de Israel).
O doloroso é sentir a fragilidade das instituições brasileiras. O clima de revolução aqui em Salvador surge em falas surpreendentes: uma policial militar foi flagrada dizendo a um dos líderes, por telefone, que queria aderir à greve, mas que seu marido, também policial, era contra, o que criaria problemas para ela em casa. Ela pergunta se o telefone do comandante do motim está grampeado, ao que ele responde que “sempre está”. O desejo expresso dessa mulher e seu conflito lembram cenas de situações revolucionárias cheias de beleza e promessas. Há algo dessa atmosfera aqui. Enternece, excita, mas também amedronta e abate, pois sabemos aonde levam quase todas as revoluções. Lembro-me das conversas na faculdade sobre “condições revolucionárias” e de filmes italianos sobre heróis comunistas — mas também de Mao, Stalin e Pol Pot.
Assistir ao filme de Clint Eastwood sobre Edgar Hoover num cinema de Salvador hoje à noite, com todo o ridículo da música e da maquiagem de Hoover e de seu namorado, me fez pensar na deficiência de nossa utilização dos talentos. Hoover implantou o uso da impressão digital, pôs em prática uma visão nítida de segurança pública. Quem nos dera que um Luiz Eduardo Soares, em tudo tão oposto a Hoover, encontrasse os caminhos para criar uma ordem eficaz e com jeito brasileiro. Ou quem sabe do caos virá alguém diferentíssimo de Luiz e nos surpreenderá.
Ouvi que a casinha de Iemanjá, aqui ao lado, foi invadida e roubada, tendo os invasores quebrado as estátuas da deusa. Houve quem visse nisso uma expressão de intolerância antipoliteísta e inimiga da adoração de ídolos, em sintonia com a presença de alguns evangélicos entre os líderes do motim. Não consigo sentir assim, embora seja muito absurdo baianos não contaminados pela campanha evangélica destruírem imagens de Iemanjá. Será que Gilberto Dimenstein está certo e Salvador é uma mentira? (E eu deveria estar preso?) Na semana em que Wando morreu em BH, tenho vontade de ter visto um Aécio presidente — e de voltar a morar na Bahia.
Dimenstein tem razão. A cidade está um lixo. Tudo aqui dá a impressão de que não há futuro. “Sim”, me disse Agostinho da Silva sobre a África, “ali de facto não há futuro. Por isso mesmo devemos fazê-lo”. Limpar o Porto da Barra, retomar a manutenção do Pelourinho, pagar bem os policiais honestos, descartar os bandidos e os governantes ineptos, refazer a imagem de Iemanjá.
Caetano Veloso.
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