Meu caro Sigmund - Eu agora também vou bem, obrigado (1969)

Eu agora também vou bem, obrigado. Obrigado a ver outras paisagens, senão melhores, pelo menos mais clássicas e, de qualquer forma, outras. Alô, alô, Realengo, aquele abraço. Por enquanto não tenho nada para contar: ainda estou em Portugal. Todo mundo sabe que Lisboa é uma cidade lindíssima e que o mar de Cascais é quase igual ao da Bahia. Ninguém é profeta. Elis canta "Irene" muito bem. Topo Gigio é. E muitas outras verdades indiscutíveis você pode encontrar por um preço assim assim algures. A Ipanemia é uma doença fértil. Vide o novo Zeppelin e o Pasquim e o Antônio Carlos Jobim e o Ibraim e a mim e o índio tupiniquim. A Ipanemia é uma doença, repito, fértil. A televisão, ao contrário, é a robustez do imbecil: eu e Gil fizemos uma aparição no programa português de maior audiência, o Zip-zip (o Zip é uma espécie de Mug luso bem-sucedido). Eu achei um fracasso, mas os jornais disseram que foi um sucesso.

Paris é uma festa. (Como você devia estar notando, eu estou escrevendo aos poucos e entre um parágrafo e outro há um boeing a mais na minha vida.) Eu dizia que Paris é uma festa: miniskirts inglesas e pés descalços americanos no Quartier Latin, beijos na boca, minicletas com Buñuel, os franceses se matando uns aos outros no Weekend de Godard, rive droite-rive gauche, os cafés de sempre, monumentalidade geral beirando o ridículo, ruas cheias, Glauber nos Cahiers du Cinema. Animação. Tenho vontade de escrever sobre o que vi (num documentário de cinema) de música pop anglo-americana, tenho vontade de recomentar o nosso trabalho aí no Brasil. Também sobre Hair, na sua montagem parisiense (viva a Roda-Viva do Zé Celso; viva o nosso show na sucata; viva o “Mustang hibernado" de Zé Agrippino de Paula & Maria Ester; viva o show dos Mutantes; viva Gal Costa). Eu gosto de Paris porque é como se de repente Recife virasse o Rio de Janeiro. Eu sofro muito. A mulher do metrô grita irritada. O garçom nunca deixa você acabar de falar. Todo mundo tem medo de perder o tempo e, principalmente, o espaço, que é muito pouco. A grossura parisiense é uma daquelas verdades indiscutíveis. Paris é uma fera. Paris é uma besta. D'após calipso.

Nazarin é um filme arrasador.

Eu não sei o que seria de nós, meu caro Sigmund. De mim, de você e do Nelson Rodrigues. Eu não quero estar daqui a mandar-lhe diário de viagem. Dentro de alguns dias estarei em Londres, imagine, onde pretendo morar. Talvez de lá, com a cabeça assentada (se ela assentar...), eu envie algum papo mais interessante, sei lá, alguma coisa que possa ser boa como informação para você, para a Pernambucália, para Belém do Pará, para os meninos da Bahia nesta hora da criança, para Sampa, para a Banda de Ipanema e outras bandas. Aquele abraço do samba do Gil!

Caetano Veloso.

O PASQUIM, 11 A 18 DE SETEMBRO DE 1969

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.

Postagens mais visitadas deste blog

O Leãozinho (Caetano Veloso)

Os Argonautas (Caetano Veloso)

Milagres do Povo (Caetano Veloso)