Meu caro Sigmund - A felicidade é uma arma quente (1969)
A felicidade é uma arma quente.
Veja como as coisas traduzidas são. De longe eu ouço alguém cantando em Queen's
Gate: “Nelson Rodrigues jumps the gun, Nelson Rodrigues jumps the gun...".
Estou certo de que foi isso que o John Lennon escreveu. Veja como as coisas
traduzidas ficam. Eu não consigo entender nada do que esses ingleses falam.
Eles, ao contrário, entendem tudo o que eu digo. Veja as coisas traduzidas:
Hide Park - raio que o parta. A grama é lindíssima. Pela primeira vez eu me
sinto num país exterior. Por mais próximo que você chegue dela, a grama
londrina não decepciona. Dentro do Round House há um domingo hippie, ou coisa
que o valha, beautiful people, uma gente realmente muito bonita. Eles agora
pulam enquanto dançam, de modo que fica igual a um baile de Carnaval. Você pode
imaginar que mais de um milhar de pessoas dancem, pulem e gritem de uma da
tarde até às onze e meia da noite sem que ninguém paquere a sua mulher, sem que
ninguém brigue ou sequer pareça de longe que gostaria de brigar? A estranha paz
dessa juventude dá medo. Parece que nós vamos todos morrer dentro em breve.
Você entra no ARTSLAB (mini-cine-bar-sem-álcool-teatro-galeria-under-ground) e
sente que há outra noção de tempo ali, alguma coisa que roça a eternidade.
Vários conjuntos do segundo time inglês se sucedem. O nível geral de
instrumentistas e cantores é muito alto, o brasileiro fica assombrado. Os
franceses têm o senso do amadorismo, os ingleses parecem tê-lo perdido. O
brasileiro, não parece ter outra coisa. Estou brincando: quero apenas dizer que
o desenvolvimento geral, a amplitude do mercado etc. etc. possibilita, aqui, um
nível médio de produção artística que me deixa embascado. Tendo ido a Lisboa e
Paris, ainda não tinha chegado ao estrangeiro. Aqui é o estrangeiro. O inf(v)erno.
Mas a felicidade é uma arma fria. Eles estão dizendo aqui que é verão. Eu estou
escrevendo vestido num casaco de peles imenso. Ou melhor: a felicidade é uma
arma quente. Morna, vá lá que seja. Antônio Carlos Jobim assoviou um bolero
lindo que ele fez para o filme no qual ele esteve trabalhando durante meses
aqui em Londres. Antônio Carlos Jobim, um dos caras de conversa mais bonita que
eu já vi na minha vida. Quero falar bem devagar sobre esse homem, porque eu
morava em Santo Amaro quando aconteceu "Chega de saudade" e em
Salvador quando aconteceu “Só tinha de ser com você" e no Rio quando ele
foi embora, digo, veio embora. Mais devagar devo falar dele porque há muita
coisa que todo mundo sabe e eu acho muito triste essa coisa de, no Brasil, a
gente ter de dizer tudo de novo. Será que alguém não compreendeu que a bossa
nova foi o acontecimento cultural mais importante do Brasil e o único que pôde
ir até o fim? Será que ninguém notou que nunca houve nem há nada à altura dos
discos que o Tom orquestrou para o João Gilberto? Preciso falar bem devagar
porque Tom está assustado com a confusão cultural brasileira e eu estou falando
para ele. Sigmund, meu caro, você sabe que o Pasquim é filho do Antônio Carlos
Jobim; o Pasquim ou qualquer coisa nova que ainda possa aparecer no Brasil. Eu
estive com ele na véspera da ida dele para aí, via Paris. Era preciso odiar com
mais veemência as sandices de José Ramos Tinhorão. Como é que as revistas
brasileiras dão espaço àquele bobão? Chega de saudade. Nelson Rodrigues jumps
the gun. Daqui para a frente, tudo vai ser diferente. Por que será que o
Roberto Carlos sempre aparece com a música certa?
Caetano Veloso.
O PASQUIM, 18 DE SETEMBRO DE 1969