Meu prezado Sigmund - Meus primeiros Pasquins em Londres (1969)
Meus primeiros Pasquins em
Londres. Eu tinha ido ver uma apresentação do conjunto americano Led Zeppelin e,
na fila, comprei o International Times. O conjunto era legal e a platéia melhor
ainda, de modo que acabou mais tarde do que a gente previa. Depois foi difícil
achar um táxi na cidade. Quando eu cheguei em casa resolvi deixar o
International Times para ler no dia seguinte, que era hoje. Quando acordei
encontrei dois números do Pasquim na sala. Adiei de novo a leitura do IT. Não
contarei nada sobre os skinheads agora. No Pasquim, que tem a entrevista de
Jorge Ben, eu li primeiro a entrevista de Jorge Ben. Achei bacana. Jorge Ben
cada ano sai melhor. Achei engraçado ele pichar um pouco o Guilherme Araújo.
Eles eram tão amigos. Além disso, pichar o Guilherme já está chato, parece
coisa do Sérgio Bittencourt ou outras pessoas sem imaginação. Achei bacana foi
o tom de sacanagem da entrevista e a maneira admiravelmente poética de o Jorge
responder. No Pasquim que tem a entrevista do Dr. Alceu, li primeiro meu
próprio texto. Não achei nada. Depois li a carta do Maciel e achei porreta.
“Here comes the sun. It's all right"- dizem os Beatles em Abbey Road.
Tá o.k., digo eu. Ferro na Boneca.
Aí eu li o Dr. Alceu e achei fantástico. Ele é um homem retado, grave, elegante.
Achei bacana o que ele disse sobre o Nelson Rodrigues (meu personagem favorito),
tão elegantemente diferente do que o Nelson Rodrigues (meu autor favorito) diz
dele. Enfim, gostei muito do Pasquim. Achei que tem vitalidade demais e, cada
vez mais longe do Brasil, já não consigo entender bem como isso é possível.
Poderia dizer que dá medo. Principalmente a entrevista do Jorge Ben é viva
demais, bonita demais. Por que só agora um gênio como ele tem espaço bastante
para falar de um jeito que deixa ver a grandeza da sua personalidade, a sua
saúde toda? O Brasil é muito esquisito. Mas Deus é grande. Os skinheads estão
dando o que falar, mas eu ainda não li o meu IT, um dos pasquins daqui,
portanto, depois eu conto. “Here comes the sun”, dizem os Beatles - FERRO NA
BONECA, grita a torcida do Bahia na Fonte Nova, no meio da Ladeira da Fonte das
Pedras. Fonte Nova, o sol rei, it's all right. It's all right. Os hippies
passam os dias sentados junto à estátua de Eros, em Picadilly Circus. A estátua
de Eros está no topo de uma fonte. Desde que eu cheguei a Londres que está
sempre caindo água demais da fonte. Há quem diga que isso é uma bolação das
autoridades para espantá-los de lá. De qualquer modo, eles continuam lá
sentados e a água da fonte de Eros é abundante, o que soa como uma metáfora.
It's all right, Maciel. Ferro na boneca. Há um abismo na porta principal, mas
it's all right, here comes the sun, Deus é grande. O Pasquim tem vitalidade
demais. Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu. Fonte Nova. Ferro na
boneca. Gostei de o Dr. Alceu falar sobre a alma lírica brasileira. Eu gosto
disso. Nelson Rodrigues também fala sempre nisso. Eu acho bacana. Talvez porque
eu esteja cansado de tanta juventura.
Talvez porque eu esteja cansado,
à maneira de Nara se cansar das coisas, eu tenho vontade de ouvir coisas sobre
a alma lírica brasileira. Nelson Rodrigues fala coisas lindas sobre a alma
lírica brasileira. E Nelson Rodrigues é um poeta laureado, condecorado. Que
esta ironia final, à qual eu não pude resistir, não venha desacreditar a
sinceridade com que eu afirmei antes gostar da falação do Dr. Alceu sobre a
alma lírica brasileira.
P.S.: adorei o artigo do Sr. Temístocles
de Castro e Silva, do Correio do Ceará. Parece um livro do Sr. José Ramos
Tinhorão.
Caetano Veloso.
O PASQUIM, 5 DE NOVEMBRO DE 1969