Mil tons (1976)

Milton é música, mistério. A memória da gente é o vídeo-teipe: vejo Roberto Carlos dando uma entrevista de bastidores de festival; em segundo plano, Edu Lobo põe a mão no ombro de Caetano Veloso e os dois saem de campo. Não há nada gravado da minha conversa com Chico Buarque no avião (com medo), indo para Salvador para fazer aquele show. Ion Muniz me disse outro dia que Tenório Júnior não veio cumprir o trabalho que havíamos combinado porque a formação que eu sugeria era absurda (piano, tuba, violino, percussões, eu e violão), que eu precisava estudar a História da Música. Ontem eu estava no show de Gil vendo como ele se despoja sem pena da história de “sua” música. Que apresentação extraordinária dos Novos Baianos (Baby rides again, and how!) no Hallellujah! Suponho que Edu Lobo não curta Jorge Ben tão intensamente quanto eu. Para que alguém possa fazer qualquer coisa assim como Jóia é preciso que as gravadoras tenham Odair e Agnaldo: o universitário que tenta me entrevistar e salvar a humanidade fica indignado diante do meu absoluto respeito profissional e interesse estético pelo trabalho de colegas meus como Odair José e Agnaldo Timóteo. Centenas de novos compositores e cantores e dezenas de velhos músicos não encontram lugar no mercado. O videoteipe: em 67, Rita Lee tinha uma cara de depois de amanhã. Mas Milton nos redime a todos. De certa forma é a ele que devemos agradecer por coisas como Nana Caymmi ter finalmente feito um disco tão genial quanto ela de fato é: não é sempre que as maiores cantoras do mundo chegam onde Nana chegou quando gravou "Medo de amar". A História da Música Brasileira de hoje é assinada por Milton Nascimento. Li numa super-revista underground francesa sobre o disco de Wayne Shorter: “Le véritable auteur est Milton Nascimento”. Mas tudo isso são fragmentos de história reunidos por um ignorante no assunto que se orgulha em cultivar essa ignorância. Milton é um buraco preto. Milton é a mãe de Nina Simone, a avó de Clementina, o filho futuro do neguinho que a gente via upa na estrada do Zumbi de Edu, de Guarnieri, de Elis. Milton é nossa grande alegria. Milton vinha vindo sozinho pelo caminho e todas as estrelas brilhantes se apagaram à sua passagem para só voltar a brilhar em sua voz quando ele cantasse. E o céu ficou negro e sem luz e então houve muito mais luz. Rogério disse que Milton é um mistério que o Brasil entendeu. Outro dia eu fiz uma música em cinco por quatro e com uma harmonia um tanto complicada, aí Dedé disse que eu estava tentando imitar Milton, mas eu queria mesmo era agradar a Milton. Chico Buarque disse que Milton é o maior cantor do Brasil.

Fui um dia cantar em Belo Horizonte e não tirei o boné de Milton da cabeça e chamei Milton de Milton Renascimento porque parecia ter havido uma revolução sexual em Minas, uma virada de era astral, novo horizonte. João Gilberto, que tudo ensina a todos nós, me ensina a entender que não devo querer parar no dizer que Milton destrói minha discussão com lon sobre Beatles x John Coltrane, sobre Domingo x Tropicalia. Que não devo querer parar no dizer que várias discussões interessantes são violentamente interrompidas pelo simples som de Milton e que muitos saberes têm, assim, de ser anulados para que se saiba mais. Som imaginário, som real. Eu amo Milton. Não me sinto muito à vontade usando palavras para me referir a ele. Nem meias palavras bastam. Nem o silêncio. Nem música. Nem mistério.

Caetano Veloso.

MÚSICA DO PLANETA TERRA, Nº3, 1976.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.

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