Minha alma canta (1996)

Paulinho da Viola é um dos meus maiores amores cariocas. Poucos são capazes de entender e admirar sua obra como eu. Não admito que um bando de imbecis ressentidos venha me ensinar a respeitá-lo. Na qualidade de seu amigo, colega e devoto, protesto contra a ignomínia de terem - no feito posar de vítima.

O que tenho visto na imprensa a respeito do nosso cachê do show do Ano - Novo é uma palhaçada. De onde vem essa caricatura de igualitarismo? Eu não desejo engolir calado os desaforos de jornalistas hipócritas nem de leitores débeis mentais que escrevem cartas à redação. (Muito me nos de ex-compositores patologicamente mentirosos.) Afinal, por que o Jornal do Brasil não distribui com as professoras de escola pública os cachês dos artistas que contrata para suas festas de aniversário, quando fecha o Metropolitan (com boca-livre para 4 mil convidados, uísque importado etc.) e apresenta megaestrelas? Que tal distribuir pelos faxineiros o pagamento dos chefes de redação? Ou dar os jornais de graça nas portas das fábricas? Se eu quiser este bilhete impresso na primeira página desse maligno veículo, devo esperar que seja grátis porque, diferentemente da Pepsi - Cola, eu sou um artista angelical? Ou, ao contrário, devo esperar um preço altíssimo por eu ter sido promovido a “marajá" por articulistas analfabetos que devem estar pleiteando certo tipo de presidência da república? Sugiro que se faça uma investigação minuciosa para saber se o Jornal do Brasil, ao celebrar os mil números da revista Domingo, ofereceu pagar exatamente o mesmo à Velha Guarda da Portela, Marisa Monte e Paulinho da Viola. Eu, de conversa com meus colegas, sei que não. Será que isso me autoriza a acusar o jornal de perdulário, racista e discriminador? (Aliás, essa conversa de pretos sambistas sem oportunidade no mercado soa como sórdida demagogia no momento em que o êxito dos grupos Raça Negra, Só Preto Sem Preconceito e Negritude Júnior ocupa o ápice da pirâmide comercial.)

Qual a explicação para o alarde contra nos terem pago aos seis 540 mil reais, quando ninguém protestou contra o pagamento possivelmente do dobro desse total a Rod Stewart? Esses bandidos das redações dizem que nós ganhamos dinheiro demais na noite do Réveillon. Não é verdade. Trabalhar na noite do Ano - Novo para mim é quase inaceitável. Não foi sem muito esforço que me convenceram a topar fazê-lo por 100 mil reais. Não há nada de superfaturado nessa cobrança. Não é a primeira vez que ganho tal quantia para uma única apresentação. Já ganhei mais. Para Ano - Novo e Carnaval, em princípio, dobra - se o preço. A companhia de alguns dos meus colegas mais queridos e a homenagem ao grande maestro contribuíram para que eu me decidisse. Tenho recusado cifras que passam do milhão para fazer anúncios. Fá-los-ei quando bem entender. Os demagogos que, em bora vivam de propaganda, fingem reprovar Tom por ele ter feito comerciais não me intimidam. Se minha intenção na vida fosse ficar rico eu não teria dificuldades de realizá-la. Mas é flagrante que os grandes nomes da música brasileira ganham muito pouco, se comparados com seus colegas de outros países (os quais, naturalmente, quando vêm ao Brasil não fazem abatimento...). De todo modo, meu cachê não pode ser decidido pelo cinismo de editorialistas. E muito menos por câmaras de vereadores. Onde estamos? Na União Soviética?

É impossível que alguém ache que o povo do Rio preferiria que sua prefeitura não fizesse festa de passagem de ano. (Vá dizer que se decidiu que de agora em diante não se gasta nenhum tostão com o Carnaval — nem os governantes nem os foliões - porque há crianças sem escola e famílias sem moradia!) A esse povo, que sempre quer o Réveillon - e que só teve palavras entusiasmadas para descrever o show do último —, eu quero mais uma vez emprestar minha energia, na luta contra as forças autodestrutivas que querem negar o mínimo de beleza a um evento em que a população carioca deu, em contraste com o comum dos seus dias, mostras de contentamento e tranquilidade. Já fiz inúmeros shows de graça. Farei outros quando quiser e achar útil. Esse do Réveillon foi patrocinado pela Petrobras e pela Pepsi - Cola. Diz - se que esta última pagou a Madonna 7 milhões de dólares por anúncio de trinta segundos. Por que essa multinacional desprezaria ter sua marca ligada a seis dos mais respeitados nomes da música brasileira? Isso só acontecerá se a imprensa carioca, com sua campanha, provar de uma vez por todas que não compensa contratar artistas brasileiros. Faço meus preços segundo os fatores implicados em cada evento. A oferta feita pelo contratante é, naturalmente, o ponto de partida das negociações. Não costumo me imiscuir nas negociações dos meus colegas quando participo de shows coletivos. Fiz uma excursão pela Europa com João Gilberto (meu mestre supremo) e João Bosco em que os cachês, os transportes e os quartos de hotel eram diferentes para cada um. Nunca soube quais eram essas diferenças. Apenas exigi que se cumprisse o que tinha sido estipulado para mim no meu contrato - e fiquei satisfeito.

Os jornalistas insinuam que o caráter de homenagem a Jobim transformaria o pagamento dos cachês numa espécie de homenagem aos artistas participantes. Nada mais ridículo. O próprio Paulinho da Viola tem repetido que o que o magoou não foi a diferença de pagamento, mas o fato de alguém na organização do evento ter-lhe mentido dizendo que os cachês seriam iguais. Eu próprio nunca esperaria que o fossem. Fingindo de igualitaristas, os repórteres, os colabora dores improvisados e os leitores missivistas demonstraram apenas que pretendem ir a fundo em sua resistência neuro tica a que se homenageie o maior compositor brasileiro em sua própria cidade. (Como o meu queridíssimo Hermínio Bello de Carvalho, eu não me conformo com o aeroporto do Rio não ter passado a se chamar Aeroporto Antônio Carlos Jobim.) E o jornal, por sua vez, quer, com essas falsas polêmicas, manter o seu valor comercial, certo de que as fortunas cobradas da publicidade obviamente não serão usadas para pintar as paredes das escolas públicas. Ter, no entanto, algumas das cavalgaduras que assinam reportagens e artigos pintando fisicamente as paredes de tais escolas - e longe das redações - seria uma vitória da cultura brasileira.

Caetano Veloso.  

JORNAL DO BRASIL, 16 DE JANEIRO DE 1996.

O texto-carta se refere a uma polêmica sobre cachês pagos a Gal Costa, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Chico Buarque, Gilberto Gil e Paulinho da Viola quando do “Tributo a Tom Jobim", show que comemorou o Réveillon de dezembro de 1995 na Praia de Copacabana.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.

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