Nara Tropicália (22/01/2012)

É muito por causa de Nara que eu desejo dissuadir os dirigentes da Odebrecht de manter o nome Tropicália no projeto de condomínio que eles estão construindo em Salvador. Dizem-me até que este seria nas bordas da floresta que fica entre a Orla e a Paralela, na altura do Parque de Pituaçu. Ao anunciá-lo, o site da empresa dizia tratar-se de uma homenagem “ao movimento encabeçado por Caetano Veloso e Tom Zé". Nomes de outras canções minhas estavam sugeridos para praças internas. Será que os compradores de apartamentos gostariam de viver num lugar que se vende como homenagem sabendo que o (s) homenageados (s) não quer (em) que suas obras nomeiem o empreendimento? Homenagem é a que a Escola de Samba Águia de Ouro, de São Paulo, vai prestar ao movimento tropicalista. Para isso tomo um avião e vou a Sampa juntar-me a Rita Lee.

Os organizadores, ao expor seu enredo, mostraram conhecimento do que significa a Tropicália. Mas um condomínio fechado, como parte do modo desregulado como vem se dando o crescimento da Cidade do Salvador, não condiz com nosso trabalho: nem o meu, nem o de Tom Zé, nem o de Gil, nem o de Rita, nem o dos irmãos Baptista, nem o de Duprat – nem o de Nara.

É natural que quase todos pensem em Nara como a musa da bossa nova e a pioneira da música participante: ela foi principalmente isso. Mas quero falar da Nara tropicalista. Bem, se ela é sempre retratada como uma moça tímida, um tropicalista ressaltaria antes sua personalidade determinada, seu desassombro em perguntar pela verdade crua das coisas, sua pesquisa permanente sobre a liberdade.

Três cenas representam Nara para mim. A primeira (nunca entendida corretamente pelo objeto da discussão): Nara me pergunta se eu concordo com amigos seus que, ao ouvirem Jorge Mautner falar em bomba atômica, contestam que “esse assunto não tem nada a ver com a realidade brasileira”, o que explicaria que Mautner fosse tido por eles como alienado. A pergunta era feita por Nara como um pedido de socorro de sua inteligência franca, trazia o desconforto com o modo de pensar vigente nos meios em que andávamos. Ela não aceitava o veredicto e estava pescando argumentos para se posicionar responsavelmente.

A segunda cena suponho que esteja em “Verdade tropical”. Caía a audiência do “Fino da bossa” e subia a da Jovem Guarda. Paulinho Machado de Carvalho, dono da TV Record, marca reunião com Elis, Vandré, Simonal, Gil e Nara para buscar uma solução. Gil pede que eu o acompanhe. Paulinho admite, mas não tenho voz, só posso ouvir. Ouço. Vandré se arrepia e enche os olhos de lágrimas na defesa da cultura nacional contra o pop americanizado. Os outros, com bem menor veemência, repetem o discurso. Nara cala. Paulinho pergunta: "E você Nara, não vai dizer nada?" Nara dirige-se exclusivamente a ele: "Paulinho, você é o dono da emissora, eu sou contratada, canto nos shows para que for escalada. Só peço que, se for possível, não me escale num programa em que esteja Elis Regina: ela disse numa revista que eu não sou cantora".

A terceira ressurgiu em minha cabeça anteontem à noite, ao ouvir Criolo dizer a Marília Gabriela o quão grande é sua admiração por Ney Matogrosso: numa minifesta na casa de Guilherme Araújo, Nara se aproxima de mim e propõe que saiamos, ela, Ney e eu: ela nutria fascinada curiosidade a respeito dele e queria ter uma aproximação sincera. Saímos. Conversamos e muita coisa se revelou para ela. Sem sombra de obscenidade ou cafajestice, Ney, Nara e eu aprendemos muito sobre nós mesmos e sobre as complexidades da vida. Ela não teve nenhuma hesitação ao nos convidar a sair daquela casa, nem um milímetro de preocupação pelo que os outros poderiam pensar.

Nara não era tímida. Com sua voz trêmula e pura, com seu violão aplicado, ela foi uma grande artista, uma grande investida brasileira na modernidade. O mesmo impulso que a levou a perguntar sobre o Brasil e a bomba, a desmascarar a farsa do dono da estação de TV, a sair de uma festa pequena com dois colegas esquisitos, a fez ter a ideia de encomendar uma canção sobre um quadro de Rubens Gerschman. Assombrada com a passeata contra as guitarras elétricas (o segundo ato da comédia da TV Record para resolver problemas de Ibope), ela viu ali uma marcha integralista, protofascista. E assim me disse. Num dia 25 de dezembro, ela me contou que, na véspera, estando sozinha na cozinha de sua casa, sentiu-se invadida de súbita e intensíssima felicidade: “Será motivo para preocupação ou comemoração?”, ela perguntou. “Bem, foi um feliz Natal”, concluiu com um sorriso preocupado. Pouco depois apresentou sintomas mais sérios. Ela tinha algo de poeta. Tudo o que há de corajoso, livre, luminoso no tropicalismo é como o espírito de Nara Leão. Não posso trair sua memória: tenho que pedir à Odebrecht que retire o nome que batizou algo em que ela esteve envolvida de um projeto que representa, no limite, a ameaça de encher a Ilha dos Frades de prédios altos. Copacabana (onde Nara cresceu) livrou-se da sombra sobre a areia com um aterro feito nos anos 70; Recife sofre ainda desse mal; Salvador, que teria tudo para ser uma joia, deve ao menos poder manter suas praias ao sol. Nara era uma praia ao sol. Franca, livre. Por causa dela, não posso fazer por menos. “Tropicália’ não deve se confundir com o seu oposto. A morte prematura de Nara lançou uma sombra em minha vida; sua lembrança mantém o sol no meio do céu.

Caetano Veloso.

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