O Cinema Falado (1986) - Caetano Veloso


O Cinema Falado é o único filme dirigido por Caetano Veloso, lançado em 1986. O longa foi inspirado na leitura de "Três tristes tigres", do cubano Cabrera Infante, onde cada capítulo consiste num monólogo independente das outras partes do livro. No filme ultra experimental, as cenas são montadas por atores falando um texto escrito ou escolhido por Caetano, que trata de literatura, música, sexo, filosofia e arte. O título do filme vem da canção "Não tem tradução", de Noel Rosa. Participam do filme Regina Casé, Dona Canô, Antônio Cícero, Rodrigo Velloso, Gilberto Gil, Dorival Caymmi, Paula Lavigne, Elza Soares, Chico Diaz, Dedé Veloso, Hamilton Vaz Pereira, Rogério Duarte, Felipe Murray, Edith do Prato, entre outros.


O Cinema Falado por Caetano Veloso

"Tive a ideia vendo programas de entrevista na televisão à noite e, também, TV Mulher nas horas de insônia matinal: como assistir a gente falando interessa sempre! Minha preguiça para a ficção. A desenvoltura com que Godard mescla leituras e declarações às suas quase-estórias. Uma afirmação do próprio Godard em entrevista: um filme poderia constituir-se apenas de alguém contando uma estória na frente da câmera. Gertrud Stein: "remarks are not literature." A ironia da situação. O cinema brasileiro tem frequentemente pretendido ser um lugar privilegiado para a reflexão. Descarar isso. A decisão de fazer o filme veio com o título: ouvi a voz de Aracy de Almeida em "Nem Tudo é Verdade" de Sganzerla. "O cinema falado é o grande culpado". 

Não escrevi um roteiro. Escrevi textos para serem ditos. Escolhi trechos de literatura (ficção e não-ficção, prosa e poesia). As imagens e as situações foram se delineando à medida que eu me aproximava do início das filmagens. Não tive que procurar ou mesmo escolher atores: cada texto escrito ou escolhido já era pensado para ser dito por uma pessoa cujos modos eu conhecia bem. As filmagens foram dias intensos e de uma felicidade diferente. Shows de música se fazem à noite, filmes de dia. Acordar às sete da manhã durante quase um mês trouxe nova dimensão à minha vida adulta. Tudo aconteceu de maneira fácil. Eu só poderia fazer um filme barato e meu modelo de produção eram os filmes de Belair do final dos anos 60 e início dos 70. Quando falei com Pedro Farkas, a primeira pessoa da equipe que consultei (queria fazer um filme com ele desde que vi "Índia"), ele ficou um pouco assustado com minha decisão de filmar em pouco tempo e, sempre que possível, fazer um só take para cada plano. Mas durante as filmagens ele só fez me ensinar e descobrir modos de resolver a luz com muito cuidado e em pouco tempo. Eu não tinha muitas dúvidas a respeito das locações: conhecia bem a sala da minha casa; a Praça da Purificação em Santo Amaro, o Porto da Barra e a estação do Méier. Isso me deu firmeza para persuadi-lo, quando ele vacilava, de que um filme pode resultar limpo esteticamente, despojado das amarras convencionais de produção. Ele, tanto quanto os atores, tinha o direito de considerar um risco fazer tudo de primeira. Mas, assim como Hamilton Vaz Pereira criou uma peça límpida de atuação dizendo o longo trecho do monólogo do "Grande Sertão" no canto de um quarto sem repetir um só plano, Pedro fez em 21 dias um trabalho de fotografia que não diminui em nada o brilho da carreira que ele vem desenvolvendo em filmes mais "preparados". Jorge Saldanha, responsável pelo som direto de um filme que carrega o título ironicamente pretensioso de O cinema falado, me transmitiu mais segurança durante a aventura da filmagem do que Indiana Jones pode transmitir a uma plateia de adolescentes. O som da música na cena da dança de Maria Esther Stockler é mais belo, em pureza e profundidade, do que muito som curtido em grandes estúdios. Bruno Weiner dirigiu a equipe e o diretor, botando ordem em todos os momentos caóticos que se insinuam. E Rodolfo (Dodô) Brandão, que me tinha sido sugerido por Pedro Farkas, era o homem que tinha de fazer tudo isso acontecer. E fez. Quando as filmagens terminaram, fiquei com saudade de todos eles, não só os já citados, como também de Edinho, Gui, Pecê, Sérgio, Luís e o outro Bruno.

Meus atores, meus amores. Antônio Cícero (a quem também o filme é dedicado) teve de dizer um texto que é exatamente o contrário do que ele pensa. Regina Casé sugeriu até angulações, sem contar com o fato de que o "número" de imitação de Fidel eu já conhecia de vê-la fazer conversando entre amigos. Ela também ajudou Luís Zerbini a encontrar soluções para driblar os textos "contra" Picasso e Matisse, sendo que uma delas (o rosto deformado pelas mãos) se tornou a cara do filme no cartaz. Dedé Veloso e Felipe Murray enfrentaram um desafio: como ambos (ela na vida cotidiana, ele no palco) têm fama de não ter boa dicção, dei a eles os textos mais longos do filme. Desafio que Dedé tirou de letra com finura e humor, e Felipe com pureza e discrição. Rogério Duarte e Dorival Caymmi falam o que pensam e eu documento. Dadi e Paula Lavigne tinham de falar de coisas que não conheciam (ele de alguns autores que não leu, ela de alguns filmes que não viu). Os dois arrasaram sob uma luz quente, ele alternando os timbres da guitarra, do baixo e da voz, ela passando com uma fluência milagrosa de uma quase não-atuação à superatuação na paródia do "Exorcista", voltando em seguida ao tom despojado com que iniciou a cena. Sérgio Maciel foi todo segurança, clareza e eficiência. Paulo César Sousa teve uma noite para decorar todo aquele texto de Tomas Mann em alemão e filmou na manhã seguinte, sem quase ter dormido. Tudo dava certo. Na Bahia choveu tanto e nós só tínhamos dois dias para fazer Salvador e Santo Amaro. Rodrigo Veloso fez do dia uma festa e Dazinho ficou com a noite. Desde que concebi o filme, eu queria que ele terminasse com Nina Cavalcanti dizendo aquele trecho de Heiddeger. Mas criança é misteriosa e eu cheguei a pensar que talvez devesse desistir e chamar uma menina maior. Felizmente Regina e Paulinha me persuadiram a insistir na minha ideia inicial e Péricles Cavalcanti, pai de Nina, me ajudou a ensinar-lhe o texto. Guilherme Araújo, o produtor, ficava constantemente espantado com a facilidade com que as coisas aconteciam. 

Um outro filme é montar o filme. E com Mair Tavares adivinhando seus pensamentos e só falando o essencial, é ioga. Devo a Mair não só o ritmo que o filme ganhou (o que ele tinha de ter, porque Mair entendeu imediatamente todas as intenções do filme), mas também a ideia de colocar aquele genial piano de Mário Peixoto do filme de Ruy Solber. Mair dá vontade da gente fazer mais filmes. O que, neste caso, é um bom pensamento. O cinema falado não é um filme: é um ensaio de ensaios de filmes possíveis para mim e para os outros."

Leia também Sou pretencioso, outro texto de Caetano sobre o filme.




Bastidores do filme. Fotos: Edinho Alves.




Frames de O Cinema Falado.

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