Sou pretencioso (sem data)

Sempre quis ser cineasta. O cinema falado é, até agora, o único filme que dirigi. Portanto seria impossível ele não ter uma grande importância para mim. Importância não apenas afetiva: as questões que ele suscita dentro e fora do seu próprio âmbito são pertinentes ao diálogo que mantenho com quem quer que acompanhe o andamento do todo do meu trabalho. Por isso me interessa defendê-lo. Não será uma defesa crítica: para isso eu precisaria afetar imparcialidade e o esforço talvez não valesse a pena. Mas, justamente por observar que outros precisam fazer mais esforço do que eu para afetar imparcialidade diante do meu filme, sou levado a concluir que tenho de defendê-lo, não das eventuais acusações ou restrições, mas da confusão e do mal-entendido. Preciso limpar um pouco a área em que ele se move para poder continuar eu mesmo a mover-me com um mínimo de liberdade.

O cinema falado foi lançado, fora de competição, no Fest Rio, o mais badalado festival de cinema do Brasil na década de 80. Recebi um convite para apresentá-lo no festival de Brasília mas declinei por duas razões: o convite para o Rio chegara antes e o de Brasília vinha com um estranho recado assegurando que o filme “ganharia o festival" se eu o retirasse do Fest Rio para pô-lo lá. Esse recado (ainda que não tenha partido dos organizadores do evento) foi o primeiro golpe com que uma certa violência mental que ronda o mundo do cinema me atingiu. O choque seguinte se deu na sessão de lançamento. O cineasta Arthur Omar, de quem até então eu desconhecia até o nome, gritou frases agressivas da platéia e xingou nominalmente o diretor e o produtor do filme, causando um tumulto que resultou na sua expulsão da sala de projeção. Foi convidado a sair por seguranças do festival. Mesmo assim, voltou mais duas vezes. Isso tudo começou quando ainda se projetavam as primeiras seqüências do filme. No entanto, num artigo que saiu na grande imprensa quando do lançamento do filme em DVD, li que Omar gritou improperios "uns dez minutos antes de acabar a projeção". E que "a platéia de amigos e fãs de Caetano Veloso que lotavam o auditório do Hotel Nacional vaiou Omar em peso; esparsos aplausos foram ouvidos". Na verdade, a algazarra que se criava por causa dos gritos de Omar não permitia discernir vaia ou aplauso: ouviam-se apenas chiados e pedidos de silêncio. A única vaia que se ouviu em peso naquela noite dirigia-se ao próprio filme. E eu me orgulho muito dela. Foi quando, na longa seqüência em que Dedé Veloso e Felipe Murray falam sobre cinema, um deles diz palavras irreverentemente críticas sobre o então cultuadíssimo Paris, Texas de Wim Wenders. A platéia vaiava O cinema falado porque este ousava pôr na boca de um dos seus antipersonagens palavras diretas de desaprovação crítica ao cineasta da moda. Me pergunto por que o artigo que li apresentava uma versão tão distorci da daqueles fatos. É, de todo modo, muito significativo que nele se conclua que O cinema falado teria “talvez passado em brancas nuvens se não tivesse sido feito por quem foi". É ruim, hein! Imagine-se o filme de um estreante anônimo que contivesse uma longa discussão crítica sobre a fala no cinema (e sobre o cinema no Brasil) encenada como um diálogo amoroso entre uma mulher e um rapaz, sob música de Walter Smetak; um texto de Thomas Mann sobre casamento e homossexualidade dito em alemão por um jovem caboclo numa praia do Rio, sob música de Shoenberg; um trecho de “Melanctha”, de Gertrude Stein, traduzido pelo próprio diretor, interpretado por Regina Casé entre uma estação de favela, ao som de Billie Holiday; um poema concreto de Décio Pignatari dito por um negro bonito mas totalmente inocente de literatura, nu, em cópula estilizada com uma moça branca, ao som da Manon Lescaut de Maria Callas; a mesma Regina Casé, literalmente contracenando com a câmera-na-mão de Pedro Farkas, num ferino estudo cômico de Fidel Castro em entrevista televisiva; uma senhora de mais de oitenta anos cantando (bem) “Último desejo", de Noel Rosa, com sotaque baiano; um pintor fazendo de sua própria cara uma peça cubista para declamar a desqualificação de Picasso formulada por Claude Lévi-Strauss (com música de Varèse); uma pergunta de Heidegger sobre o futuro da civilização ocidental pronunciada por uma menina de sete anos, entre flores, sob música de John Cage; um diálogo de Sansão e Dalila, de Cecil B. DeMille, dito, em tradução brasileira (mas com legendas no inglês do original), pelo casal que fala de cinema, simulando um assalto em que um apartamento de luxo em São Conrado substitui a rica tenda de Dalila que Sansão assalta no filme de Hollywood, enquanto se ouve a versão brasileira da “Canção de Dalila", o tema de Robert Young para aquele filme, cantada por Emilinha Borba etc. Não. As únicas nuvens brancas que se formaram sobre o inescapável interesse de tais idéias e imagens se devem ao fato de o filme ter sido feito por quem foi: um artista conhecidíssimo em sua área, inclusive por usar de procedimentos semelhantes (e tom semelhantemente pretensioso) em canções, discos, livros, shows e entrevistas. Essa careta de esforço para parecer imparcial ilustra o desacerto da abordagem desse e de outros comentários de que O cinema falado foi objeto.

Diz-se, por exemplo, que me vali da estrutura dos filmes de Godard e de Bressane para compor o meu, mas que aqueles dois diretores apresentam, em suas obras fragmentárias, um fio imperceptível de narrativa, enquanto O cinema falado é uma coletânea de curtas. É notório que Godard é uma referência fundamental para mim. Em entrevistas, no livro Verdade tropical, em toda parte, repito que o cinema de Godard foi um dos principais inspiradores do Tropicalismo. Na metade dos anos 80, eu tinha muito claro em minha mente o que tinha sido e o que é Godard. Pois aquele era exatamente o momento que se seguiu à sua segunda vinda, a qual se deu com Sauf qui peut, la vie. Eu tinha acabado de brigar publicamente com o ministro Celso Furtado, com o presidente José Sarney e com o rei Roberto Carlos por causa de Je vous salue, Marie. Como tivera a idéia de fazer um filme em que a fala (e a fala tendentemente ensaística) predominasse, decidi fazê-lo de modo tão nitidamente antigodardiano quanto minhas gravações de “Asa branca”, “Mora na filosofia" ou "Podres poderes” são antijoãogilbertianas. Godard é um cineasta do ritmo. Seus planos têm ritmo interno, mas esse ritmo está subordinado ao ritmo do fluxo, à “música da luz”. A composição do quadro nunca se esgota em si mesma, como acontece em Antonioni. Bergman, que não gosta de nenhum dos dois, considera o grande pecado de Antonioni a paixão pelo quadro em detrimento do fluxo: ele não poderia usar o mesmo argumento contra Godard. E de fato não o faz. Ele não gosta de Godard por causa da exibição de cerebralismo e, sobretudo, pela recusa da narrativa dramática. Mas o ritmo de poesia que Godard busca (e freqüentemente consegue, caso contrário seu cinema cai num "audiovisual" inconsistente) é o ritmo de que eu quis deliberadamente fugir ao fazer O cinema falado. Admitir ser influenciado por alguém que se admira muito é imodéstia. Não podemos nos sentir merecedores com tanta facilidade. Assim, escrevi, dirigi e montei (com Mair Tavares) O cinema falado com a mais firme decisão de não fazer nada à maneira de Godard. E nunca disse o contrário. De fato, só fiquei à vontade para colocar pessoas no filme falando sobre "imitar Godard" por me sentir seguro de estar longe de tentar fazê-lo. As falas / cenas têm a aparência de objetos estanques, o estilo visual é irregular e descontrolado, a escolha dos atores e o jeito de levá-los a trabalhar está mais para Pasolini, enfim, tudo é feito de modo a evitar aproximações com o que considero o estilo Godard.

Por outro lado, apesar de aparentar compor-se de cenas isoladas fechadas em si mesmas, O cinema falado não é uma série de curtas. Os filmes de Godard - mas sobretudo os de Júlio Bressane – freqüentemente me faziam pensar sobre o problema da duração. Me parecia sintoma de alienação que tantos filmes pudessem mostrar-se tão conspicuamente livres das convenções narrativas e teimassem em durar cerca de uma hora e meia. Esta questão permanece um mistério para mim. E me leva a considerar que certas longuras de cenas nesses filmes exercem a função de tapar buraco. Como, no caso dos dois diretores citados, as iluminações poéticas explodem com grande intensidade apesar disso, penso que o mistério talvez se explique pelo amor inocente que ambos dedicam ao cinema, o que os teria levado a negar tudo o que banalizou o longa-metragem médio, menos a duração média de longa-metragem. É como se eles dissessem: isto aqui é que é um filme de verdade, essas coisas lindas é que se devem fazer num filme, não as vulgaridades do cinema convencional. Mas eles não ousam fazer um filme com quinze horas, outro com três minutos e ainda outro com 25 segundos de duração: com uma metragem demasiado longe da hora-e-meia dos filmes de cinema, eles se sentiriam colocando toda aquela beleza em outra coisa que não um filme. Pensei muito nisso ao planejar O cinema falado. Agora, por que O rei do baralho ou Prénom Carmen não são considerados um punhado de curtas embaralhados? (Aliás, o cinema de Bressane é abissalmente diferente do de Godard, mas vamos deixar isso para outra hora.) Há uma ironia específica na escolha do tema de O cinema falado: as falas políticas e sociológicas, em uma palavra, teóricas, dos filmes do Cinema Novo sempre soaram falsas. Os cineastas daquele movimento parece que estavam mais apaixonados pela política e pela vida intelectual do que pelo cinema. Este era como que um meio para que um misto de militância e intelectualismo se exercitasse. Mas o fato é que isso contribuiu para a força de originalidade do cinema brasileiro que nos anos 60 e 70 chamou a atenção do mundo. No meu filme, eu quis tratar do assunto oscilando entre a mofa e a exaltação. Levando às últimas conseqüências o defeito construtivo, fiz um filme de falas conteudísticas sobre a fala conteudística no cinema. Esse é o assunto explícito do filme e o atravessa de ponta a ponta. Às vezes (como quando a imagem da moça branca e do moço preto nus volta rapidamenté em meio ao capítulo intitulado "Pintura"; ou quando Maurício Mattar cita Lorca anunciando que aparecerá nu mais tarde; ou quando Paula Lavigne, depois de repetir, com a voz da menina do Exorcista, "fuck me, fuck me", ecoa, ainda usando a mesma voz, o Grande sertão de que Hamilton Vaz Pereira recita longo trecho muitos minutos antes, dizendo "no meio do redemoinho" etc. etc.), apenas às vezes, há indicação de inter-relação temática entre as cenas; mas isso é feito com parcimônia, e não é absolutamente necessário para que a unidade do filme se afirme. Essa unidade aparece quando se chega à seguinte constatação: a rigor, todas as cenas de O cinema falado pertencem ao capítulo intitulado "Cinema", são extensões dele. Escrevi, no texto que distribuí à imprensa no lançamento do filme, que "O cinema falado não é um filme: é um ensaio de ensaios de filmes possíveis para mim e para outros". Isso era o máximo que eu podia dizer sobre o caráter fragmentário do filme. Mas é óbvio que a declaração também diz algo sobre sua unidade. Afinal, o filme é todo feito de cenas de pessoas falando textos teóricos ou poéticos, sempre numa semi-encenação de ação pouco definida que em geral nada tem a ver com o texto dito. Esse é um procedimento imperativo que amarra o filme a seu tema único. A dança é o elemento recorrente que faz contraponto. Nem então nem agora eu admitiria que se trata de uma série de curtas-metragens. Nada contra uma série de curtas. Outro dia recebi de Jorge Furtado um DVD que continha todos os seus curtas: quem me dera O cinema falado tivesse um terço da riqueza cinemática que há naquele disquinho. Um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos é Céu sobre água, de José Agrippino de Paula, um curta-metragem mudo (há apenas música indiana adicionada às imagens) feito em super-8. Não tenho o fetiche do longa, como Godard ou Bressane: se quiser fazer um filme totalmente transgressor, ele terá a duração que o que quer que o inspire exija - e duvido que ela coincida com a hora-e-meia convencional do longa-metragem. Fiz O cinema falado como exercício para em seguida fazer filmes narrativos. A duração de longa era já um aceno ao cinema popular. Gosto do cinema como arte de massas. Acho que há muita poesia no mero fato de ele o ser. E no fato de alguém que faz filmes constatar isso (na verdade, grande parte da beleza dos filmes de Godard e de Bressane vem dessa constatação, embora eles tenham crescentemente se definido pela criação de um cinema erudito - e talvez aqui estejamos do outro lado da moeda da questão da longura).

Faço sempre, dentro de mim, um paralelo entre O cinema falado e o disco Araçá azul. De fato, sempre disse que o Araçá azul parece a trilha sonora de um filme "de arte" amador. E é notória a minha volta, depois dele, aos discos de canção popular típicos. É bem verdade que todo disco meu, de antes e de depois do Araçá azul, é sempre um atípico disco de canção popular típico. Creio que assim também seriam (serão?) meus outros longas-metragens: atípicos exemplares de típicos filmes populares. Por essa razão, o fato de Augusto de Campos mostrar-se reticente diante de O cinema falado e francamente entusiasta em face do Araçá azul me dá o que pensar. Claro que entendo que a Augusto (que gosta muitíssimo mais de música do que de cinema) um disco experimental lacônico (não há textos discursivos no Araçá azul) agrade mais do que um filme sufocado por falações prolixas, ainda que isso venha matizado de ironia e que o experimentalismo seja ostensivo. Mas não sou nenhum idiota: fiz O cinema falado sem ter experiência na direção de filmes; no entanto, o filme é menos canhestro do que o Araçá azul, disco que fiz depois de anos de trabalho profissional na área da música popular. Deixei muitos defeitos em O cinema falado de propósito, enquanto fiz grande esforço para superar defeitos do Araçá azul, em vão. O refrãozinho do “mulato nato", da faixa "Sugar cane fields forever", eu o inventei sentindo um suingue bonito que eu próprio não pude reproduzir na hora da gravação (em nenhuma das várias tentativas, em dias diferentes, que fiz de gravá-lo bem) — e isso por causa da minha insegurança musical, da intolerável limitação do meu talento para a música. Não há nada que se lhe compare em O cinema falado. Ao contrário: a seqüência das falas sobre artes plásticas está mais no nível do meu tão invejado disco do Walter Franco. A ingenuidade das peças orquestrais de Perinho Albuquerque, um gênio musical autodidata então ainda muito verde para escrever música de vanguarda, também me esfria quando ouço o Araçá azul. O mesmo se dá com os efeitos eletrônicos em "Tu me acostumbraste". E mesmo as vozes superpostas de “De conversa" estão chapadas, sem profundidade e sem riqueza de textura. Já em O cinema falado, Dedé Veloso e Felipe Murray foram escolhidos para superar o modo pouco articulado (no caso dela) ou de articulação artificiosa (no caso dele) de falar porque os dois eram conhecidos em nosso círculo de amizades. E a superação se fez com grande êxito. Eu os convidei com absoluta certeza de que seria assim. E assim foi. E se por algum surpreendente acaso assim não fosse, não haveria o filme. Teimosamente quis que a cena mais longa do filme, e justo aquela que fala sobre a fala no cinema, fosse interpretada por dois amigos meus que partiriam de seus problemas de dicção. E eles não exibem problemas de dicção no filme. Quem o faz é Antonio Cicero, que, no entanto, foi convidado porque lê poesia e prosa (em várias línguas) como poucos. Mas Cicero odiava o conteúdo do que eu lhe pedi para dizer. E não se sentiu à vontade diante da câmera - além de enfrentar uma ventania que dificultava a captação do som. Deixei assim mesmo defeituosa a cena - e não a mudei de posição no filme: por um capricho de experimentador, não quis mexer na ordem que tinha preestabelecido no roteiro. A vitória de Dedé e Felipe, o embaraço de Cicero, o desaviso de Wellington Soares, tudo aponta para aquilo que Roberto Correia dos Santos ressalta, no mais belo artigo escrito sobre O cinema falado saído à época do seu lançamento: o amadorismo fundamental de todo o meu trabalho. Esse amadorismo, na música, é, em parte, conseqüência da limitação de minha acuidade; no cinema, também em parte, é causa dos gestos desabusados, em ambos, uma defesa feroz de alguma verdade minha. Pretendo tê-lo mantido nos bem-acabados shows e discos que se seguiram a Caetano e O estrangeiro. E continuar mantendo-o nos discos e filmes que venha a fazer, por mais polidos que se apresentem. Sou pretensioso.

Caetano Veloso, s/d. 

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005. 

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