O específico fílmico

Era a alegria social, quero dizer: era a linguagem comum e era para mim o mais importante. De resto, todos os meus amigos. chegaram a gostar (?) muito do filme de Fellini. Ah... lembro de um filme de René Clair “As Grandes Manobras” que me deu uma lição formal. A leveza dos cortes, sei lá o que. O lado ficção do cinema sempre me foi menos respeitável: eu era facilmente mau caráter nas minhas imaginações por esse campo. Meus argumentos eram bolados para fazer emocionar mentindo e eu sabia disso. Era “social”. Eu tinha muito medo de não ter ninguém comigo, eu queria impressionar facilmente as pessoas tais como eram, mesmo sem me sentir identificado com elas. E isso era totalmente realizado nos sonhos de argumentos cinematográficos. Ao contrário do cinema "real" que eu fazia na solidão. Aqui estava meu gosto e nada mais: assoviando, eu me deixava levar pela luz que aparecia no fim do canudo de papel ou entre os dedos. Cores discretas, folhas tenras, sardas, cabelos voando levemente. Tudo era panorâmica e travelling e música. Estradas. Não havia corte propriamente, senão alguns “escurecimentos” lentos conseguidos com o fechar dos olhos. O caminho do ginásio, a "estrada dos carros” com seus ciprestes, o muro dos fundos, a beira do rio. Ah, e a bicicleta. Ainda hoje guardo o vício de assoviar segundo as imagens quando estou num trem, num ônibus, num automóvel. A bicicleta de Bethânia inspirou filmes mais violentos: tombos e paralelepípedos, ruas apavorantes, o cheiro da morte e da alegria, sujeira, música terrível. Atores também éramos eu Chico Mota e Bethânia. Principalmente Chico à noite na praça do Rosário: “I Vitelloni" nos fez chorar. A nós e a Agnelo Rato Grosso. E de onde eu devo partir: daquele gosto das cores em movimento sob música. Não há linguagem superada. Esse lirismo de “Avarandado” não é o que serão meus filmes (?), mas outra coisa também como "Avarandado” e sua (minha) tragédia maior que a linguagem. Há também o problema das poltronas e tudo o mais. Não é preciso saber de nada. Se eu falasse em Godard agora talvez me parecesse a mim mesmo mais fácil suportar a idéia, mas não. Eu quero olhar as coisas de novo. Se não tiverem mais gosto, então não há mais esperanças para mim. Mas há de sempre haver. Vou recomeçar.

Caetano Veloso, s/d.

Fonte: Alegria, Alegria (Org. Waly Salomão), Rio de Janeiro, Pedra Q Ronca, 1977.

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