O mundo não é chato (2001)
São filhos. São meus. Ainda que nenhum dos dois chegasse a tocar comigo, seriam, nessa mesma medida, meus. Davi em cima do caminhão do trio elétrico ou no cenário suntuoso do show de Marisa Monte; Pedro num grupo de rock experimental ou alinhavando o rico tecido sonoro de Lenine: de longe ou de perto, meus. Seus movimentos, suas venturas e suas aflições sempre me diriam respeito. Tê-los a meu lado, tocando meu repertório, opinando sobre meus arranjos; vê-los todos os dias nos ensaios, nos palcos de show - tudo isso representa para mim uma emoção continuada e renovada. É que os vi nascer. É que ainda os vejo nascer.
Pedro cresceu em minha casa com Dedé, tanto quanto Moreno cresceu em casa de Tetê e Ronaldo, pais de Pedro, músicos também. Parecem recentes as noites em que ele, aos seis ou sete anos, via seu sono interrompido e partilhava comigo alguns minutos de minha insônia. Quando hoje o vejo romper seu silêncio tão concentrado para encenar uma imitação hilariante - em que o timbre, o sotaque, a alma, a pele do personagem se fazem presentes -, lembro da caracterização surpreendente que ele improvisou na Escola Parque, quando, tendo ido ver Moreno, o vi pela primeira vez. E o companheirismo leal com meu filho por todos esses anos desde então! O orgulho que tenho das amizades de meu filho que já é homem! A esperança e a confiança que isso insufla às visões que Paulinha, Moreno e eu temos hoje de Zeca e Tom em companhia de seus colegas de escola!
Pedro Sá cresceu para a música. Vi com orgulho e admiração sua seriedade e seu talento. É para mim uma grande alegria que, nisso também, Moreno tenha podido manter-se perto dele. Na verdade, Noites do Norte não seria o disco que é se não fosse por Pedro e Moreno: eles me esclareceram, me encorajaram, me aconselharam e, com a competentíssima paciência de Marcelo Sabóia, desenharam a sonoridade do disco. Assim, a presença de Pedrinho no show Noites do Norte se faria sentir mesmo que não subisse no palco conosco. A densidade dos timbres, a modernidade das texturas, a consciência das proporções são sua marca. Soa como um inventor, ouvinte de inventores.
Davi também é amigo de Moreno. E um tanto primo dele por parte de mães. Não foram colegas de escola, portanto não o vi desde pequeno com a frequência com que vi Pedrinho. Mas Davi é filho de Moraes Moreira e isso já implica um outro parentesco. Que vem do bar Brasa e passa por Botafogo e Vargem Grande. Filho dos Novos Baianos. Uma vocação cristalina de instrumentista: como Jacob, Armandinho, Oscar Peterson ou Airto Moreira. Ele também está presente em Noites do Norte: toca em 13 de Maio. Uma das coisas que vi fazerem Moreno orgulhar-se mais foi ter gravado tocando junto com ele essa música. Davi deslumbra com seu domínio relaxado e seu bom gosto despretensioso. Ele tem (e mantém intacta) a alma simples da sensibilidade popular sem jamais roçar o banal ou o simplista. E sua beleza pessoal cresce em luminosidade por ser tão refinado o seu despojamento. Ele é virtuose sem fazer soar uma nota pedante. Soa como um mestre.
Mais do que uma vitória, é uma glória pessoal contar com filhos dessa magnitude. O mundo não é chato.
Caetano Veloso.
JORNAL DO BRASIL, CADERNO B. 15 de JUNHO de 2001.
Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.