O perfil de Bethânia (1981)

Quando a turma da Careta me pediu pra escrever um perfil de Bethânia, eu desviei o olhar com vontade de dizer não, mas considerava a ideia redundante. Eu já havia dito tudo sobre ela. Contudo, uma dessas minhocas que escrevem na revista Veja deu (à guisa de crítica, como sempre) um show de ressentimento contra tudo o que em Bethânia é exuberância e desprendimento, e isso me deu tesão de escrever de novo sobre sua grandeza.

O perfil de Bethânia é um dos mais belos perfis de mulher que já houve. Sua testa avança numa convexidade incomum e o homem superior logo nota que ali se guarda um cérebro incomum. Sob a testa, cujo arrojo estanca na linha descendente da sobrancelha, que é como que uma versão suave da máscara da tragédia, desenha-se o nariz espantoso: é o nariz do chefe indígena norte-americano, é o nariz da bruxa, o nariz de Cleópatra e, no entanto, é o único nariz assim, os outros são apenas uma referência a ele. Se esse nariz na vanguarda de uma batalha que o homem superior adivinhou tramar-se no cérebro por trás daquela testa aponta orgulhosamente para o futuro da beleza, a boca parece desmentir a armada: emergindo a um tempo brusca e suavemente à flor do visível, ela anuncia o mel que destilará e consumirá: em palavras, em beijos, em mel. Sim, porque se os olhos traem o corpo por serem uma revelação do espírito inscrito na carne, a boca trai o corpo por ser uma revelação do próprio corpo. Insondáveis são os mistérios do espírito e olhos que vêem inquietam-se diante de olhos que vêem.

Mas os mistérios do corpo não são menos insondáveis e a boca, esse transbordamento do lado de dentro de um corpo vivo para o seu exterior, é um pequeno escândalo permanente. Assim, a boca de Maria Bethânia, vista aqui de perfil, primeiro parece negar e depois explica e aprofunda a informação plástica estampada na parte superior de sua cabeça: traduz em doçura e amargor o que fora enunciado em dureza e alegria. O que seu queixo arremata numa curva fresca de felicidade infantil. Uma esfinge, um pierrô, uma astronave. Apenas o rosto de uma mulher, desta mulher, pequena e franzina, que deixa o espírito sair pela boca e queima a carne com a luz dos olhos. Que nos dá as costas para falar com alguém do outro lado e depois se volta, agora de frente para nós, indecifrável. Rodrigo, nosso irmão mais velho, sempre achou Bethânia lindíssima.

Outro dia, uma mulher que eu conheço pouco me encontrou no Baixo e me perguntou: "O que foi que aconteceu com Bethânia? Quando ela apareceu logo eu via vocês no Cervantes e achava ela horrorosa, agora eu acho que ela é uma das mulheres mais bonitas do Brasil". Eu respondi: "Com Bethânia não aconteceu nada, você que era burra”. A moça não gostou de ser chamada de burra e disse: “Digamos que era insensível". Eu falei: "Insensível é pior que burra”. Ela riu.

Mais ou menos aí pelo meio da década de 70, Bethânia me pediu para dirigir um show para ela. Ela ainda não tinha passado para a faixa AM, como se diz, mas eu já percebia (ou antevia) na sua trajetória um brilho de grande estrelato e bolei um show que ao mesmo tempo o assumisse gritantemente e o criticasse honestamente. Escolheríamos uma grande casa de espetáculos (o Municipal?) e faríamos três dias de grande gala com grande orquestra, uma bateria de escola de samba, um pequeno conjunto elétrico pesado, atabaquistas de candomblé, iluminação de Ziembinski, um repertório cheio de mudanças de clima com fortes efeitos e, com esses elementos, comentaríamos os temas da riqueza, do poder e da vitória. Cheguei a esboçar uma canção violenta sobre o dinheiro. Bethânia me ouvia reticente e, por fim, chamou o Fauzi Arap para conversarmos. Este me ouviu ainda mais reticentemente e eu comecei a achar meu projeto ridículo. Era e não era. Um espetáculo assim, então, teria sido um corte brusco na construção natural do estrelato de Bethânia e ela, que também o desejava e o criticava ao seu modo, deve ter achado que tudo isso pareceria muito presunçoso. Creio que foi o show chamado Cena muda que terminou resultando daí: Fauzi incorporou a temática do dinheiro e do poder a um espetáculo para sala pequena e longa temporada, como Bethânia e ele vinham fazendo habitualmente.

Ele tem repetido incessantemente (com palavras e atos) que esse é o elemento de Bethânia, que foi em teatro pequeno que ela surgiu e aí que ela se dá melhor, que ela não é filha das emissoras de televisão nem das grandes gravadoras. E ninguém poderia em sã consciência dizer que ele está errado. Ressalte-se também que essa posição não nasce de um preconceito que ele porventura nutra contra artistas que tenham identificação com a TV ou o disco: Fauzi partilha comigo de uma admiração e um carinho por Elis Regina em que o fato de ela ter sido lançada pela televisão não só não é esquecido, como surge até determinando em parte os sentimentos. Não. É a especificidade da arte e da pessoa de Maria Bethânia que ele procura captar da melhor maneira possível, quando age e fala como o faz. Por isso, me enterneço quando leio no programa do Estranha forma de vida que ele se sente talvez no lugar do “Mano Caetano”, ao dirigir Bethânia.

De fato eu dirigi o primeiro show dela. Foi na Bahia, no Teatro Vila Velha, e chamava-se Mora na filosofia. Era composto de canções e textos. Fauzi não viu. Mas quando eu assisti a Rosa dos ventos cheguei a perceber nele uma espécie de mediunidade. Não que houvesse qualquer semelhança exterior entre o que eu tinha feito e o que ele estava fazendo: era uma coisa mais funda de sacação dos climas secretos. Na verdade, nós somos muito diferentes e é claro que eu desgosto de alguns lances: achei que beirava a demagogia aquela cena no Cine Show Madureira onde Bethânia ironizava "a voz de uma pessoa vitoriosa" (assim como meu antigo plano de supershow beirava a pretensão e o suicídio artístico), não me identifico com esse sentimento de que o artista é o marginal inadaptado e não consigo gostar da Geni do Chico (perdão, Glauber), apesar de comentá-la através do "Se eu quiser falar com Deus", de Gil (canção de que eu também não sou o maior fã).

Por outro lado, adoro ver Bethânia em situações diferentes (o show com o Chico no Canecão, o show dirigido por Waly Salomão, Doces Bárbaros etc.) e, sinceramente, ainda gosto mais do show Fantasia de Gal-Guilherme do que do Estranha forma de vida. Ambos são shows magníficos, mas, como disse Marina, o Fantasia é mais minha cabeça e minha cultura. Contudo, o mais importante é que, para além da cultura e da cabeça, Fauzi Arap atinge o fundamental da arte e da pessoa de Bethânia através de uma espécie de magia. Estranha forma de vida é, de fato, um claro instante na história da relação amorosa que há entre Fauzi e Bethânia. Relação da qual eu tenho um ciúme cheio de orgulho, cuja intensidade pode ser medida pelo espaço que ele terminou tomando neste escrito.

Eu sempre achei que Bethânia é a filha favorita de minha mãe. Dizem que Freud escreveu que um "mother's baby" terá sempre sucesso. Tenho tido muita inveja de Bethânia porque na minha fantasia os acontecimentos da vida dela possuem uma espécie de inteireza diante da qual a minha própria vida parece consistir numa série de imprecisões e transparências. Roberto, o nosso irmão imediatamente mais velho do que eu, me disse que inveja em Bethânia o modo intenso como ela vive suas emoções. Não me lembro de ter tido ciúmes quando, aos quatro anos, “vi” Bethânia nascer. Como se sabe, escolhi o nome para ela, contra toda a família, e considero isso uma profecia: é mais do que óbvio que ela só se podia chamar assim. Ela foi a única adolescente rebelde da família e, nessa altura, eu interferi a seu favor, o que me pôs na posição de meio-tutor e meio-cúmplice. Aprendi, então, com ela, a vivência da rebeldia. Eu tinha inteligência: conferia legibilidade e legitimidade a seus atos e acessos aparentemente desarrazoados.

Data dessa época o companheirismo que há entre nós e que só morreu uma vez para renascer em outro nível, mais forte. Hoje somos mabaços, gêmeos, dois leões, a mesma pessoa (como disse Cortázar e gente muito mais importante do que ele). E representamos bastante bem, para um número enorme de pessoas, o amargor e a doçura de Santo Amaro, a beleza de meu pai e minha mãe, o talento de Nicinha, Rodrigo e Mabel, a integridade de Clara Maria, o brilho de Roberto, a franqueza de Irene, o mal e o mel da Purificação.

João Gilberto disse para mim e para Gil, depois da gravação de que Bethânia participou no Brasil: “Que lindo, Maria Bethânia!... Ela veio, brincou com a gente mas não saiu do trono dela". Perna Fróes (também geminiano como João e ela) falou uma vez: "Beta, você não vai errar nunca". Chico Buarque declarou que a ela ele obedece cegamente. Eu, Gil e Gal podemos discutir as atitudes e posturas, mas com relação a Bethânia há sempre um respeito aristocrático que o ritmo de seu comportamento exige. E nós estamos sempre aprendendo com ela algo dessa majestade, sem nunca se meter em movimentos ou projetos de grupo, sem ser um líder intelectual. Ela é para nós uma espécie de guru. Assim, o espetáculo Doces Bárbaros, que nós fizemos juntos, foi primeiro uma coisa dela e depois algo com que ela não tinha nada a ver.

Agora, quando a vemos vir ressurgindo lentamente no palco, por detrás das lindas cortinas transparentes que o adorável Flávio Império desenhou para sua volta aos pequenos teatros, no ritmo poeticamente perfeito que Fauzi encontrou para instaurar o clima de concentração e cuidado requeridos pelo tipo de espetáculo que eles escolhem fazer, somos levados a pensar mais uma vez: Bethânia é uma deusa da sabedoria.

Caetano Veloso.

CARETA, RIO DE JANEIRO, 18 DE AGOSTO DE 1981.

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