O som dos 70 (1970)

O som dos 70 certamente só será audível quando nós estivermos perto dos 80. Pelo menos só então será identificável. Talvez, pelo contrário, seja ouvido de pronto e fique para sempre inidentificável. O som dos 70 talvez não seja um som musical. De qualquer forma, o único medo é que esta venha a ser a década do silêncio. À pergunta "Para onde vão os Rolling Stones agora?", Mick Jagger respondeu: "Pra trás". O que não só prova que ele está muito para a frente, como também que quem está com ele não está lá muito otimista. Nas afirmações de John Lennon & Yoko há um otimismo ingênuo explícito, mas tudo o que acontece com eles mostra que não há senão exigência desesperada de que esse otimismo seja possível. Não sem razão, a revista Time abre a década homenageando A MAIORIA SILENCIOSA à qual o presidente Nixon se refere quando tem de falar sobre o Vietnã.

Com a ascensão da música pop, o som dos 70, veio toda uma geração cujo universo-linguagem já começa a carecer de conflito - é o que parece sentir o John Lennon das furiosas entrevistas anti-Beatles ("Paul e Brian Epstein me obrigaram a aceitar aquela medalha. Paul sempre defendia a opinião de que devíamos continuar usando paletó e gravata. Eu queria cantar com os Stones e eles ficavam com essa mania de Beatles. Nós já tivemos de mentir demais."). Diferentemente do que acontece com os seus colegas americanos, os Beatles vêem sua rebeldia transformada em acervo do Império Britânico pelo nacionalismo provinciano insular dos ingleses. Ou melhor: descobrem-se participando desse sentimento e mesmo alimentando-o. Até a devolução da medalha, a imprensa inglesa não parecia sentir senão orgulho pelos Beatles. Toda a imprensa. E os hippies também. As entrevistas absurdas do John Lennon, seu supercasamento com Yoko Ono têm um parentesco com o surgimento dos supergroups, com o desprezo que Jimi Hendrix Experience e Cream demonstram pelas suas próprias carreiras de conjuntos: todos parecem querer destruir as certezas estéticas que vieram com eles. Seja como for, ninguém está à vontade no papel de figura definitiva de uma bela história. E tudo isso tem a ver com a sugestão de Mick Jagger: "Unless you are Fidel Castro". Uma coisa é certa: a maioria silenciosa, na Inglaterra, não exala grande simpatia pela figura de Yoko Ono. Eu vi um espetáculo em que ela aparecia gritando durante 45 minutos à frente de uma banda formada por John Lennon, George Harrison, Clapton (Cream), Delaney & Bonnie (um casal americano que encantou Beatles & Rolling Stones), Mitch Mitchell (Jimi Hendrix Experience) etc. Era a primeira vez em quatro anos (sei lá) que John & George (ou qualquer beatle) apareciam em público. Havia umas quatrocentas pessoas num auditório em que caberiam 2 mil. Por outro lado, a Scotland Yard fechou a exposição de desenhos do John alegando obscenidade: os desenhos representavam (eu ouvi dizer) cenas de cama de John e Yoko. Os 45 minutos de close do pênis de John Lennon (filme Auto portrait) podem ser vistos em clubes fechados. Embora nem tão fechados assim. Mas o responsável pela região de Leicester Square não permitiu que fosse exibido naquela praça o filme Smiles, um estudo de mais de meia hora também, não do pênis, mas do sorriso de John Lennon, feito pela Yoko: “O casal não condiz", disse o cara, "com a dignidade da praça e dos seus moradores”. O que, para quem conhece Londres, soa muito engraçado. Mas eu não vou continuar falando nessas coisas. Mas nem morta. Cansei. A boneca está impossível hoje, teorizando, teorizando. Chega. Basta saber que os anos 70 ainda não soaram. E talvez não soem. O que há é Yoko Ono que não tem nada a ver com som. E o som dos 60 (Janis Joplin, Jimi Hendrix, Stones, Beatles). E o som dos 50. E o som dos 40. E o som dos 30. E o Brasil?

Caetano Veloso.

O PASQUIM, 26 DE FEVEREIRO DE 1970.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005. 

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