Olha, gente: (1970)

Olha, gente: é preciso fazer uma distinção importante: uma coisa é ser consumidor de arte, ouvir, ler, gostar. Outra coisa é ser produtor de arte: você pode gostar de Assis Valente, mas não tem obrigação nenhuma de fazer o que ele fazia. Você não pode mesmo fazer nada dentro do universo de linguagem em que ele se movimentou. Já pensou se o Jorge Ben fosse dar uma de Pixinguinha?

O mar não está para peixe, Ferreira Gullar, e a barra está pesada. Aquele seu artigo (hoje talvez tão velho no Brasil e em você que isto aqui não lhe valha uma resposta) era sintomático disso. Você teme o desprezo (?) que a moçada dá ao Martinho da Vila e eu temo seu texto. Seus pontapés não batem em lugar nenhum. Por que você foi embora pra Pasárgada? Tudo isto aqui está uma merda, meu velho, e, como não há mesmo saída imediata, o cara começa a dar pontapé em tudo que está por perto: o imperialismo se dá é aqui, Ferreira. O que está longe nossos pés não alcançam: a música brasileira, a arte brasileira, a cultura brasileira, a revolução brasileira em marcha. O povo solidário na sua alegria e na sua esperança, todas essas realidades ideais, fique tranqüilo, são realmente inatingíveis pelas nossas patas.

Quero lembrar umas coisas a você:

a. João Gilberto é um dos maiores conhecedores da tradição musical popular brasileira e já o era quando os tinhorões, as urtigas e os cansanções da vida, à sombra das pontes pretas, disseram que a bossa nova era um movimento entreguista.

b. Sérgio Mendes tem sido muito injustiçado pela crítica brasileira: o fato é que sua música teve de se abrasileirar muito para fazer sucesso nos Estados Unidos. Era muito mais jazzística quando ele trabalhava aqui no Brasil e gravou aquele disco com o Tom.

Gostaria que esses pequenos detalhes fossem para você tão reveladores quanto o são para mim. Foi por assumi-los como exemplares que descobri a música de Jorge Ben superando discussões como esta que agora me vejo obrigado a alimentar com você. A música de Jorge Ben é genial porque tira de letra esse babado de ter de escolher entre rendição total à invasão internacional e uma cultura que se dedicara desde sempre a copiar, arremedar, puxar o saco da cultura estrangeira, embasbacar-se. E é por causa da música de Jorge Ben que eu estou lhe respondendo, não sem certa preguiça, aquele artigo. É que a posição nacionalista de 22 serviu para tanta coisa, e os novos Chico Buarque, os novos Gil e os novos Caetano serviram para tanta coisa que eu temo que também a música de Jorge Ben venha a ser demasiadamente útil quando a vejo namorada em artigos como o seu, depois de alguns anos de solidão no programa de Roberto Carlos.

A música popular brasileira não se renova a cada semana. É verdade. Como o povo mesmo, ela é densa, complexa, custa a mudar. Nenhum avanço real é uma pequena mudança. Eu assisti ao horror e ao espanto que causou a bossa nova, a aparição de João Gilberto. A música de Jorge Ben era bastante inteligível quando parecia ser a confirmação do que se pode diluir da bossa nova: aqui e, bem depois, nos Estados Unidos via Sérgio Mendes. Quando ela mudou de registro, ou quando nela se revelaram os elementos de uma nova linguagem que só depois seria, digamos, traduzida pelo tropicalismo dos baianos, foi desprezada por "informe", "desconexa", "louca", "alienada". E não foi exportada por ninguém. Porque isso ainda é mais difícil: não somos, como você bem sabe, um país de exportação. A exportação não pode ser um critério de julgamento: pode ser, quando desejada, uma parte do trabalho que se realiza, tão passível de crítica quanto o resto. Talvez a mais perigosa, é só. Não se trata de fazer uma jovem inglesa inteligente entender o tuaregue; não é isso que vai testá-la. Uma jovem inglesa inteligente me disse ao ouvir o tuaregue que é muito triste ver que os groups brasileiros tentam imitar as imitações que a western music faz da música oriental, em vez de utilizar seu próprio primitivismo. Eu disse a ela que é muito triste constatar que suas próprias palavras justificam o desprezo com que ela diz western music. Mas o problema não é esse. E sim tentar demonstrar que esse problema, entre outros, prova que a música brasileira não se parece em nada com um trem. Nem rápido nem lento. E que a sua escolha dessa metáfora explica porque você confunde os avanços reais com descarrilhamentos desastrosos. Essa visão linear do processo cultural é a mesma que levou alguns bons compositores da chamada segunda fase da bossa nova a desprezar as buscas de Paulinho da Viola por ele não estar por dentro de harmonia impressionista ou a considerar Tom necessariamente melhor que Pixinguinha ou a ridicularizar (em surdina, é claro) a simplicidade harmônica do Chico Buarque dos primeiros sambas. Nesse trem em que você foi para Pasárgada, Ferreira, a música popular brasileira não embarcou e muitos dos seus supostos companheiros de viagem contribuíram decisivamente para isso.

Caetano Veloso.

O PASQUIM, 3 DE JUNHO DE 1970.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005. 

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