Panamérica (2001)

Antes do lançamento de qualquer uma das canções tropicalistas, tomei contato com PanAmérica. O livro representava um gesto de tal radicalidade – e indo em direções que me interessavam abordar no âmbito do meu próprio trabalho - que, como já relatei no livro de memórias Verdade tropical, quase inibiu por completo meus movimentos. Ainda hoje, quando o releio, ele guarda seu poder de impacto. É um caso único na literatura brasileira. Essa epopéia do Império Americano, como Mário Schenberg a chamou, é um livro marcante. O texto, além de evitar toda nuance psicológica na construção de personagens e aderir as imagens exteriores e aos atos diretos, apresenta uma áspera uniformidade que se torna visível nas páginas, sempre ocupadas por blocos escuros de palavras, sem parágrafos ou travessões que lhes dêem espaço para respiração. É um monólito. Um monólito escuro feito de miríades de visões em cores vivazes que se somam, se multiplicam e se anulam. Compõem se tais visões de ícones da época do Império Americano. E o narrador diz “eu” repetidas vezes, mesmo quando, em português, o pronome sujeito não precisa ser explicitado. Esse narrador executa sucessivas peripécias que o põem em posição privilegiada para testemunhar os atos dos ícones mundiais: dirige uma superprodução bíblica, hollywoodiana; faz sexo intenso e freqüente com Marilyn; participa de operação de guerrilha com Guevara; mata um adido militar norte-americano - e termina por  experimentar a dissolução do mundo tal como o conhecemos.

Esse "eu" que tanto assim se anuncia não é um "eu" no sentido em que até o século XIX se entendia esse termo. Fragmentário e não-subjetivo, ele bóia lúcido e sem afeto num mundo rico de variedade e intensidade mas desprovido de sentido. É o não-herói (não o anti-herói) pós-moderno literariamente realizado. E com uma firmeza que pareceria não ser possível no tão pré-moderno e tão cordial Brasil da metade dos 60. Mas José Agrippino de Paula vivenciou os conteúdos da vida do final do século passado com tanta frieza e tanta paixão que talvez não haja no mundo nenhuma obra literária contemporânea de seu PanAmérica que lhe possa fazer face. O livro soa (já soava em 1967) como se fosse a Ilíada na voz de Max Cavalera.

Ele ecoava, é verdade - como vim a ver depois —, o Deus da chuva e da morte, de Jorge Mautner. De fato, esse livro de Mautner ofereceu inspiração para muito do que há em PanAmérica. Mas José Agrippino parece ter escolhido uma das vozes do Deus da chuva — aquela menos lírica, aquela em que os tons da compaixão e da doçura cristã (assim como os aspectos de "brasilidade") não entram como harmônicos - e aferrou-se a ela, fazendo de seu livro um objeto limpo, inteiriço, sem porosidade e sem contemporizações. Não se trata aqui de comparar para julgar, mas é esclarecedor dizer que, com ser pioneiro duma prosa pop brasileira nascida, em parte, da literatura beatnik norte americana, prosa essa que liberou o estilo de José Agrippino, o livro de Mautner é também uma obra mais generosa, mais maleável e mais aberta à possibilidade da esperança, enquanto PanAmérica é radicalmente impermeável a qualquer disfarce do humanismo ou do espírito brasileiro. Tanto Mautner quanto Agrippino são atraídos pelos pensadores chamados irracionalistas e são hostis à Razão. Mas José Agrippino é dotado de um senso clássico das proporções e, ali onde Mautner é barroco, desigual, desmedido; Agrippino é conseqüente, fiel a um princípio único que norteia sua escrita, sectário de si mesmo. Não posso deixar de atribuir grande parte das características que os unem - e que os distinguem dos outros escritores brasileiros - ao fato de serem ambos escritores paulistas (Mautner nasceu no Rio, mas é paulista de formação). A experiência da vida na São Paulo da segunda metade do século XX apresenta uma identidade imediata com a dos grandes centros urbanos do mundo, como não se pode conhecer em nenhuma outra cidade brasileira. São Paulo não oferece as amenidades nem as características “exóticas” que fazem do Rio e de Salvador, como de Belém, São Luís, Manaus ou Recife, atrações turísticas. Por outro lado, sem que se tenha tornado uma cidade equilibrada nem suficientemente confortável ou bela para brilhar entre as grandes do mundo por sua própria eficiência como centro urbano, ela se impõe sobre as outras cidades brasileiras pela superioridade econômica e informacional - e pela duvidosa superioridade de ser desprovida de encantos agradáveis. É um dos pontos do planeta onde mais drasticamente se sente o mal-estar do capitalismo tardio, embora seja ainda recém-saída da fase agrária. Eu, que sou um baiano do tempo em que se crescia olhando exclusivamente para o Rio, preciso de São Paulo como de um antídoto contra um suave veneno. Assim como, por razões semelhantes embora opostas em suas aparências, a poesia concreta e a USP me são referências essenciais, sem a literatura beat-paulista de Mautner e Agrippino eu não posso seguir em frente. E, se o marco histórico dessa corrente é o grande Deus da chuva e da morte, a epopéia de José Agrippino de Paula é sua expressão mais concentrada e madura. Com PanAmérica, Agrippino chega ao extremo dessa tendência literária, chegando ao extremo de si mesmo como autor único. Ele é uma lucidez que se reconhece inútil mas nunca ri de si mesma. Não há fantasmas de salvação em seu mundo. A única salvação seria estar, desde logo e em termos absolutos, salvo.

Antes de escrever Pan América, José Agrippino escreveu Lugar público, um romance sombrio que já apresenta um autor dono de um mundo próprio. Depois de PanAmérica ele começou a escrever um novo texto longo que, nos antípodas da superpoluição urbana, se voltava para uma mitologia e uma simbologia da natureza como perene utopia realizada: Terracéu. Ele nunca concluiu esse romance (não seria um romance, mas como chamá-lo?). No período de preparação dessa nova obra, ele viveu na Bahia por alguns anos, após uma estadia significativa na África. Eu, que já o conhecia desde 1966, o via com freqüência em Salvador: ele não estava submetido à perspectiva através da qual um brasileiro vê a Bahia, tampouco a olhava como um turista. Mais radicalmente gênio paulista do que nunca, ele selecionava o que, na Bahia, poderia confirmar seu imaginário de uma nova pureza que se seguisse ao caos urbano extremo, uma nova era que não se confundia com a Nova Era dos californianos nem com o milenarismo sebastianista de brasileiros e portugueses. Não creio que José Agrippino queira retomar a composição desse livro, nem sei o que aconteceu aos manuscritos. Lugar público pode ser encontrado em sebos. Mas é PanAmérica que deve ser lido pelas novas gerações: não há nada, nem mesmo entre os que hoje fazem uso do mais violento ataque à cultura popular brasileira para aderir sem mediações ao drama atual do mundo, que seja tão radical quanto esse livro. Por isso, considero mais do que auspicioso o aparecimento de uma sua nova edição.

Caetano Veloso.

Rio de Janeiro, março de 2001. Prefácio à 3a edição do livro de José Agrippino de Paula, Pan América, São Paulo, Papagaio, 2001 (primeira edição: Rio de Janeiro, Tridente, 1967).

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005. 

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