Paris (1970)
Paris, Macunaíma, a vida irreal
em Hampstead Heath, o cinema, a crônica incurável do viver baiano novecentista,
Bath Festival, a primaveracidade de Londres, a primavoracidade grega junto do
Mediterrâneo catalão, si us plau: que preguiça. Quem tem saco pra Virginia
Woolf? Nos setenta milímetros do infinito, nos dois mil e um anos de viagem, na
longa-metragem, no urubuquaquá no pinhém, anywhere, no século passado, eu, no
presente, eu, no singular, desgarrado da nave, caindo? para fora da tela,
desprojetado, eu, hein, rosa?, a minha fantasia, meu pesadelo, desprotegido, eu,
não. O cavalheiro do apocalipse, o primeiro último de nós, esse não segue
viagem nem cai da nave: apenas louvaria o ocorrente. Eu, não. Eu sou ele. Eu
nem isso. Mesmo porque não está ocorrendo exatamente nada. Ou melhor nada está
ocorrendo exatamente. Nada assim como a gente possa dizer. O Mediterrâneo não é
como o mar da Bahia. Aqui, na Costa Brava, o mar é frio pra burro. Os turistas
franceses não acham. Os turistas franceses são muitos e ouvem músicas chatas.
Ninguém reconhece em mim um turista brasileiro. Nem eu. Crônica. A inglesa
deslumbrada: ai de ti, Copacabana. O festival de soleiras que embesta o país.
Vana verba. Telhas vās. Redes, papos de anjo. Tonzinho querido. Tomar uma
agüinha de coco, sofrendo a brisa mansa de Itapoã. Um daqueles passarinhos
viria pousar no braço da vitrola, mas isso não incomodaria Joãozinho que
continuaria construindo seu labirinto que vai da beira rio para a mesma beira
do rio. E assim por diante e cronicamente e incuravelmente. No restaurante,
alguns franceses discutem sobre as minhas origens. No bar, o soldado espanhol
reclama do modelo do meu calção: acha pequeno demais, pede pra eu botar a calça.
Eu boto a camisa. No fim da conversa, ele já percebeu que o meu calção não é
dos menores que há ali e que ele apenas me abordara porque minha cara era
esquisita. Quase sorri, quase pede descuLPas, vai embora. Ganha, por causa de
sua cara muito esquisita, o apelido de João Bafodeonça. Tudo acontece
cronicamente neste veraneio acadêmico. Assim eu como almejas ao vapor e peço
mais uma orchata. Os outros tomam sangria. A nave segue, a tela é enorme, eu
tenho medo. Ampúrias continua de frente para o mar. O mar. O asfalto. A
tramontana. As ruas estreitas de La Escala, as casas antigas, as pedras etc.
etc. A casa onde estou morando foi construída recentemente em estilo funcional:
frente torta, canos azuis fazendo de sacada, nada funciona. - Ah, meu velho,
antes fosse isso... Barra limpa, barra limpa. Tudo legal. Vamos para o terraço
cantar. Há um terraço. De lá se vê o mar. Barra limpa. O sol está quente, mas a
brisa tramontana abranda. O vento fustiga, mas o sol consola. Etc. No terraço a
gente canta de cima. A nave segue, crônica, mas a gente pode cantar jóias da
música popular brasileira acima do Ben e do Mautner.
Caetano Veloso.
O PASQUIM, 19 DE AGOSTO DE 1970.