Preciso dizer que te amo (2001)
A navalha é carinho, é cartão de
crédito. O Brasil vai ensinar ao mundo por isso: porque nas letras de Cazuza
sempre aparece esse fio. Por exemplo: o direito de dizer assim desabusadamente
e com todas as letras que o Brasil vai ensinar o mundo (direito que foi
adquirido pelo timbre da voz dos versos) é confirmado pela surpresa da
afirmação de que o Brasil vai aprender (tem de aprender) com o mundo. Outro
exemplo: a letra de “Bicho humano" resulta coesa e enxuta, como se fosse
isso mais por causa do H da hora que anuncia e ecoa o humano do bicho que uiva
do que pelos jogos singelos de “dance”, “canse", "transe",
"chance": o uivo é que assegura a sobriedade da composição. Não se
passa por uma letra de Cazuza sem um acontecimento que excite o interesse. Vê-las,
lê-las, agora assim reunidas e comentadas (pelas vozes da hora, vozes que
trazem o gosto da hora em que as canções foram feitas e gravadas) é constatar
com assombro a intensidade do sentimento que atravessou a música brasileira na
pessoa desse menino de Ipanema.
O rock brasileiro dos anos 80,
aquela onda enorme que representou a maturação do estilo entre nós, foi um
acontecimento auspicioso porque saudável e rico, revitalizador do ambiente e
revelador de numerosos grandes talentos. Tão numerosos que, mesmo com o
espantoso crescimento do mercado, muitos grandes talentos correram o risco de
sumir numa multidão. O caso de Cazuza foi especial: ele quase corre o risco de
destacar-se demais da turma. Não só porque era desde logo um dos maiores entre
os grandes, mas também (e talvez sobretudo) porque a originalidade de sua
formação poderia ter lhe valido a expulsão do grupo. Ele chegou ao rock com uma
bagagem de samba-canção, com um eco de Rádio Nacional, que o movimento só aguentou
porque era de fato forte e profundo. O depoimento de Nilo Romero sobre a
composição de “Brasil” comove quando ressalta que ele e George Israel viram ali
a oportunidade de fazer “samba rock" para valer, como nunca tinha sido
feito antes. De fato, a expressão pode estar já na música de Jackson do
Pandeiro, a intenção já rolava entre os tropicalistas, a combinação aparece
ricamente ensaiada nos arranjos dos Novos Baianos — mas samba-rock mesmo,
cravado, desde a medula da composição, só “Brasil”. E é evidente que a
inspiração para isso não chegaria sem Cazuza. Sem o timbre, as palavras, o
sotaque, a personalidade musical do poeta Cazuza. Porque ele está entre Herbert
Vianna e Lobão como está entre Ataulfo Alves e Lupicínio.
Com isso tudo, o que mais
impressiona no corpo da produção de Cazuza agora é a carga de esperança que ela
suscita. Paradoxalmente, o monte de canções de desespero e lamento que nos
deixou esse garoto que morreu tão cedo exala esperança. Mas o paradoxo é só
aparente. O tom desesperado está sempre cheio de gosto pela vida, e o lamento é
antes sensualidade. A força da esperança, no entanto, vem da obra em sua
relação com a história da nossa música. E nossa história se tem contado
privilegiadamente através da música popular.
Podemos chorar de saudade de
Cazuza. Mas sempre tornamos a nos alegrar com sua presença divertida e desafiadora,
porque ele é uma das pessoas que mais sabem expressar este fato dificílimo de
entender e admitir: os humanos somos todos imortais.
Caetano Veloso.
Orelha do livro que reúne as
letras de Cazuza. Preciso dizer que te amo, São Paulo, Globo, 2001.
Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.