Primeira feira de balanço (1965)

I.               PARÊNTESIS

(A julgar pelos artigos histéricos reunidos em livro pelo Sr. José Ramos Tinhorão - infelizmente o único a colocar o assunto música popular brasileira em discussão -, somente a preservação do analfabetismo asseguraria a possibilidade de fazer música no Brasil. Embora assim não esteja explícito em palavras no livro, a atuação dos artistas da classe média é - se levarmos até o fim esse raciocínio - apenas um acidente nefasto: não houvesse ocorrido isso e o futuro nos asseguraria pobres autênticos cantando sambas autênticos, enquanto classe-médias estudiosos, como o Sr. Tinhorão, aprenderiam os nomes das notas. Restando apenas saber para que aprendê-los.

Quanto a nós, resta esclarecer por que nos demoramos no comentário de um livro tão apaixonado e superficial quanto pretensioso de ser lúcido e profundo: este comentário parece-nos ter sua oportunidade justificada não apenas no fato de ser o livro do Sr. José Ramos Tinhorão o único que toca o assunto agora, mas, principalmente, na certeza de que ele representa a sistematização de uma tendência equívoca da inteligência brasileira com relação à música popular. Sem dúvida, por amor à beleza do samba, muitos salvadores têm conduzido seu pensamento de reação à inautenticidade por um caminho enviesado: ao fim de um artigo em que proíbe orquestração, nega Villa-Lobos, desanca as “tentativas nacionalistas” de Carlos Lyra, o Sr. José Ramos Tinhorão para diante do fato absurdo e inexplicável de que João Gilberto é um artista “realmente original”.)

II.               EXPOSIÇÃO

(Qualquer um pode ver claro que os problemas culturais do Brasil estão bem longe de ser resolvidos. Depois da euforia desenvolvimentista – quando todos os mitos do nacionalismo nos habitaram – e das esperanças reformistas quando chegamos a acreditar que realizaríamos a libertação do Brasil na calma e na paz —, vemo-nos acamados numa viela: fala por nós, no mundo, um país que escolheu ser do minado e, ao mesmo tempo, arauto-guardião-mor da dominação da América Latina. Se se fechou o círculo vicioso da economia e da política abjetas, isto é, se os problemas básicos estão distantes da solução a ponto de permitirem soluções às avessas, não será no campo da cultura que nos teremos aproximado de uma autonomia definitiva.

Não se pense que estas palavras demonstram a tendência simplista de estabelecer uma relação causal entre cada evento político-econômico particular e os fatos culturais: sabemos a que proximidade do ridículo tem-se chegado no afã de fazer uma ligação direta entre a construção de Brasília, a pretensa indústria automobilística e a bossa nova. Entretanto, é necessário compreender a impossibilidade de a realidade cultural extrapolar a totalidade que ela compõe.)

A discussão sobre a música popular brasileira - raramente organizada em artigos, uma só vez em livro, mas sempre sugerida em shows e na seleção de repertórios —, essa discussão difusa tem-se lançado na direção de algumas conclusões a respeito da validez cultural do movimento que se caracterizou por uma conscientização mais amadurecida da influência do jazz e que veio a se chamar, carioquissimamente, de bossa nova. Os menos ingênuos não esqueceram que há muito os elementos jazzísticos habitam os nossos gostos e os nossos ouvidos: o cinema falado é o grande cuLPado da deformação de excelentes vocações musicais; isto é, do desenvolvimento técnico malbaratado de artistas como Johnny Alf, Dick Farney: a produção desses rapazes corresponde a uma alienação da classe média subdesenvolvida, cuja meta é assemelhar-se à sua correspondente no país desenvolvido dominante, tal como lhe é apresentada pelas cores de sonho do cinema que é produzido para isso. Certo. Entretanto, é necessário ir além – compreender esse processo, mas sob outro enfoque: tratando-se de arte, é sempre perigoso fugir à perspectiva estética. Ora. Depois das invenções impressionistas de Debussy, o jazz foi a maior contribuição para a música erudita contemporânea; como enriquecimento técnico e inovação formal, como nova visão criativa-interpretativa —, crítica, enfim, como revolução cultural no seio da música, o jazz está em toda parte. De Villa-Lobos a Aznavour. Mesmo que incluamos, justamente, o amor pelo jazz no processo alienatório que nos levou a tentar dançar, cantar e mesmo namorar, viver como nos filmes americanos, não teremos entendido corretamente esse processo se não atentarmos para o fato de que o conhecimento do jazz pode representar, de qualquer modo, uma necessidade verdadeira de todos os estudantes de música, no mundo: o resultado do trabalho de Carlos Gonzaga e Celly Campello não tem o mesmo sentido do de Luís Eça. Isto é, claramente se diversificam os que querem a todo preço representar diante de si mesmos e dos outros brasileiros a “grandeza" de se parecerem com os americanos porque são americanos, dos que ouviram mais do que tudo, por todos os motivos e mais um que é o fato de eles serem dotados do mistério da musicalidade, o jazz. Sem dúvida, a imitação grosseira da pior música americana e a busca de igualar-se tecnicamente aos melhores jazzmen não são senão dois aspectos do mesmo processo de alienação. Mas, quando se começou a falar em bossa nova, outra coisa tinha acontecido: o surgimento do cantor João Gilberto em discos orquestrados por Jobim - lançando os sambas do próprio Jobim / Carlos Lyra / Vinicius de Moraes, revivendo Caymmi & Ary e citando Orlando Silva - o surgimento de João Gilberto tem, musicalmente, um novo significado, cuja importância independe do fato de ele ter, por motivos de conforto profissional, transferido residência para Nova Iorque. Porque em João Gilberto (isto é, nos arranjos de Jobim, na composição de Lyra, de Gilberto Gil, Chico Buarque de Hollanda, no canto de Maria da Graça, enfim, em todos que aprenderam tanto com João Gilberto) o jazz não é senão um enriquecimento da sua formação musical, um ensinamento de outras possibilidades sonoras, com as quais se está mais armado para compor, cantar e mesmo interpretar, criticar, redescobrir a tradição legada por Assis Valente, Ary Barroso, Orlando Silva, Vadico, Noel Rosa, Ismael Silva, Ciro Monteiro e o grande Caymmi. Quer dizer, o disco chamado Chega de saudade — e tudo o que veio depois com força bastante para ser fiel às suas maiores conquistas (malgrado o inevitável degringolamento publicitário circundante) -, esse disco superou a alienação que o antecedeu exatamente por não ter fugido ao reconhecimento dos elementos que enriqueceram inutilmente a técnica dos seus antecessores. E nos armou para revê-los: eles tiveram a importância histórica de, seja por que caminhos que tenha sido, nos colocar na possibilidade do domínio de uma técnica musical resultante de um dos mais importantes movimentos surgidos em nosso século, no seio da música, e que se tornou conhecido pelo nome de jazz.

Resta saber se tudo isso tem alguma coisa a ver com o samba, essa forma que, levada pelos negros da Bahia, evoluiu no Rio e de lá ganhou o Brasil através do rádio e do disco. Se acompanharmos a evolução do samba até onde nos agrada ou interessa e o cristalizarmos num momento que nos parece definitivo, poderemos nos ater ao samba de roda da Bahia e renegar até o mais primitivo partido-alto carioca; reagindo contra a possível inautentificação do samba, muitos se voltaram para o morro e alguns acreditaram que somente lá ele existe realmente: Carlos Lyra fez um samba sobre esse assunto e foi compor com Zé Kéti e Cartola. Entretanto, o samba há muito deixou de se restringir ao morro, como houvera deixado de se restringir à Bahia. E ninguém pode de boa-fé acusar Ary Barroso de uma apropriação indébita por expressar-se em samba sem ter vivido no morro e sem ser semi-analfabeto. De resto, a parceria de Carlos Lyra com o pessoal do morro não resolveu os seus problemas de composição, que só vieram a ter sugerida a sua resolução quando ele compreendeu que é nessa tradição, representada por Ary, Caymmi, Orlando, Leo Peracchi, que se inserem os nomes de João, Jobim e o seu próprio-artistas não-primitivos cujo trabalho está além do conceito pejorativo de estilização.

(Ter atingido a consciência de que se pode saber os nomes das notas e estar a par do que vem acontecendo com elas no mundo sem deixar de ser brasileiro não é tudo. O problema do músico brasileiro é o problema da libertação do Brasil. Depois de Jobim apareceram, com um atraso de decênios, novos jazzmen subdesenvolvidos, toda a onda publicitária que se fez — na imprensa como nas próprias produções musicais - em torno da obra de João Gilberto; a reação contra isso – da parte dos que admitem que os letrados façam samba - , a princípio inspirada com equívocos e acertos nos acertos e erros da protest song, terminou por gerar uma nova onda publicitária, dessa vez fundada em demagogias esquerdizantes; tornou-se, então, comum a combinação ostensivamente ridícula das duas coisas: mocinhas alegres por todo o Brasil repetiam os passos inventados por Lennie Dale enquanto, sorriso de Doris Day nos lábios sustentando uma vocalização just jazzy, discorriam sobre os privilégios ou incitavam os pescadores à luta. Hoje (da parte dos que não admitem samba a não ser primitivo) diz-se que a volta de Zé Kéti, Nelson Cavaquinho e Cartola é a prova definitiva de que a bossa nova, mera onda superficial, dá-se por finda. No entanto, essa "volta" não parece passar de uma necessidade da própria bossa nova, um elemento exigido pela sua própria discussão interna. Não há nenhuma volta, eles sempre estiveram lá: até hoje o samba de roda da Bahia permanece a despeito de Pixinguinha. De resto, discos como Roda de samba e Rosa de ouro têm seu sucesso restrito aos universitários. Enquanto o povo - e aqui podemos dar à palavra povo o seu sentido mais irrestrito, isto é, a reunião das gentes — desmaia aos pés do jovem industrial Roberto Carlos.

Pelo menos por intuição, concluímos que agora a grande guinada a dar na nossa discussão é voltar ao ponto nevrálgico que a gerou: rever o legado de João Gilberto. Os grandes sambistas tradicionais continuam produzindo, mais que isso, sambistas novos surgem nos morros cariocas a despeito da corrupção das escolas de samba - os “tradicionalistas” argumentariam melhor se se apegassem à demonstração de sambas como “Coração vulgar” ou “Conversa de malandro", de Paulinho da Viola, compositor da Portela, de 23 anos. Se quisermos ser fiéis a Paulinho sem deixar de fazer samba, temos de tomar com João Gilberto a melhor lição — a que nos dá sua extraordinária intuição seletiva. Quanto aos grandes problemas — o da verdadeira popularização do samba, da sua volta como linguagem entendida e forma amada por todo o povo brasileiro, o da desalienação das massas oprimidas em miséria, slogans políticos e esquemas publicitários - esses, não os resolveremos jamais com violões.

III.              INTERPRETAÇÃO

Os sons que Antônio Carlos Jobim organizou com flauta, violinos, bateria, contrabaixo, madeiras, metais e João Gilberto (canto e violão), isto é, a organização sonora que lhe foi sugerida pelo entendimento do violão e do canto de João Gilberto é, ao mesmo tempo, samba popular e música de câmara, com muitos ensinamentos colhidos no jazz. Mas não é jazz. Basta ouvir “Rosa morena", de Caymmi: um assobio malandro, uma flauta lírica parecem nascer do violão que, por sua vez, resulta das notas e das palavras da melodia; tudo compondo uma peça de forma redonda e acabada. Não se trata de uma superposição de formas nem de uma (como muitas) tentativa (desde a premissa, frustrada) de resolver uma forma pela outra: aqui não se aprimoram as fórmulas conhecidas para dar uma aparência de “jazz" ou de “clássico" ao samba que se interpreta, nem se considera o samba um mero tema a partir do qual se pode realizar uma peça "erudita” ou “jazzística". Todo o conhecimento técnico, adquirido onde quer que seja, está a serviço da recriação da forma samba, do jogo rico que se faz com seus elementos, os sons distribuem-se ritmicamente para reencontrar o gosto pelo gingado, o domínio do ritmo complexo do samba, para, daí, atingir (como poucas vezes se conseguiu) seus conteúdos: a malícia, certa nostalgia, o dengo.

É que João Gilberto é, de todos os tempos, o intérprete brasileiro que melhor compreende a bossa, esse mistério que habita o sambista, e melhor pode jogar com ela. Apenas Orlando Silva houvera intuído de forma tão completa, nuance por nuance; a musicalidade brasileira, sua filigrana. Sendo que João tem a vantagem de ser um músico mais formado: seu violão, sua capacidade harmônica lhe possibilitam estar presente em todo o instrumental que o acompanha, expandir seu canto até a brisa dos violinos, até o gemido do trombone, o ornamento da flauta. Como disse Jobim: "Quando Joãozinho se acompanha, a orquestra também é ele".

Fora da história do jazz, que é principalmente uma arte de intérpretes, raramente um cantor ou um instrumentista chegou a reformular tão profundamente toda uma cultura musical, sugerindo, inclusive, caminhos para os compositores: dos sambas que João Gilberto lançou ("Chega de saudade", "Saudade fez um samba", "Insensatez", "Outra vez", “Coisa mais linda"), podemos dizer, parodiando Jobim, que também são João Gilberto. Porque através dele é que os compositores descobriram, com mais segurança, como organizar seus conhecimentos no sentido de expressar-se com fidelidade à sua sensibilidade de brasileiros.

Sem dúvida, alguns aspectos da sua maneira peculiar de ver e cantar as coisas foram, de boa ou má-fé, distorcidos pela confusão que se faz entre o que um artista pode dar aos outros em abertura de visão e o que de mais exterior pode ser reconhecido no que há de pessoal em seu trabalho. Equívoco que é a descoberta do tesouro para os que têm o olho fixo nas facilidades comerciais proporcionadas pela redução publicitária: a atitude poética impotente e fresca, a pirotécnica musical, os mil barquinhos e florzinhas e marzinhos azuizinhos tão odiados por Narinha são o resultado final disso.

Mas os verdadeiros frutos da obra de João Gilberto não são as deformações publicitárias e sua maior conquista não é ter gravado um disco nos Estados Unidos, no qual o esforço simpático de Stan Getz em tocar música brasileira não é bastante para criar interesse por nada além do próprio João cantando “Pra machucar meu coração" ou "O grande amor": os grandes frutos de sua obra são a “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas”, a briga de Nara que possibilitou o surgimento de Maria Bethânia, as buscas de Edu, Chico Buarque de Hollanda, a necessidade de reestudar a música brasileira, o show Rosa de ouro; o fruto de seu trabalho é o trabalho daqueles que souberam discernir entre ensinamento e o estilo. (No fundo, o que gerou muita confusão foi o fato de o gosto poético musical de João ser aquele que só vamos encontrar realizado em Caymmi, compositor. Isto é, uma forma muito mais próxima dos sambas da Bahia do que do sambão. Muitos acreditaram que o negócio era basear-se nessa diferença e alguns - porque, de resto, o grande sambista Dorival Caymmi nunca foi devidamente reconhecido em sua grandeza – acusaram Joãozinho de assassino do sambão, para eles o único verdadeiro samba.)

O fruto do trabalho de João Gilberto é o trabalho daqueles que aprenderam com ele apenas porque uma canção só tem razão se se cantar.

IV.              DEPOIMENTO

O que chamamos, hoje, de música popular não passa de uma forma vulgar de expressão poético-musical. Na medida em que se tornou um jogo inculto e semi-erudito de formas várias, de elementos colhidos em diversas tradições, tendendo a quedar desligado de qualquer tradição e, sendo vinculável a cultura nenhuma, impotente de impor-se, ela própria, como tal. Isto é: o samba, passando a ser divulgado pelo rádio e pelo disco (vale dizer — por e para a classe média), mostra uma linha de evolução clássica (no sentido de coerente com a organicidade evolutiva de uma cultura) bastante tênue e interrompida, perdida no emaranhado flutuante da mediocridade. Ou ainda: os sambas, primitivos da Bahia, os partidos-altos e sambas de morro cariocas etc. são uma cultura; mas o resultado global do que sai em disco e se ouve no rádio não significa absolutamente nada. Mais: é diluída na incultura apátrida que o artista que necessite vai buscar a possível continuidade evolutiva de uma forma de expressão das mais importantes na sugestão de uma cultura brasileira; e através do mecanismo comercial que exige essa diluição é que ele leva à feira os seus trabalhos.

É a duras penas que o samba aflora com espontaneidade em Ary; possivelmente ninguém perfez uma obra como a de Caymmi: a tendência de ampliar os meios expressivos esteve sempre a serviço da vulgarização.

Penso que esse ainda é o nosso problema, ou melhor, que o movimento que surgiu com o nome de bossa nova valeu principalmente por nos exigir a colocação desse problema. Vejo que é a muito duras penas que se conseguem alguns momentos de organicidade em nosso trabalho; que raramente alguma coisa reconhecível se adensa para logo depois se perder na confusão: a gente faz um samba quase sem querer de tão bonitinho, exulta por acreditar ter realizado um bom momento na trajetória dessa linguagem - eis que são tão poucos os músicos ainda capazes de ouvi-lo, enriquecê-lo, compreender o que ele pode significar, aprender com ele ou, no correr da História, reensiná-lo; e mesmo esses têm poucas oportunidades de responderem uns aos outros. É simples: se eu componho porque gosto do samba e tento - tendo aprendido a cantar com Ciro, Noel, Lyra, Caymmi - voltar ao lirismo simples do samba de roda e lançar o resultado disso para o futuro, isto é, para Gracinha, Chiquinho, Edu, Berré, aí eu me concedo pensar que estou fazendo alguma coisa e creio na validez de continuar fazendo, mas se a tentativa que exigia ser entendida e complementada termina por transmitir-se numa linguagem fragmentada ou, mesmo quando se insinua uma unidade semântica, por vender-se na feira de retalho onde suingue, cool, renascença, poesia brasileira moderna, blue, esquerdismo, bop e até samba são comprados em quantidade de liquidação, aí tem-se de reconhecer que não se está dizendo nada.

Com os meios de divulgação servindo-se da mediocrização das massas, o samba e sua discussão interna são do interesse de uma elite. Os grandes sambas tradicionais do Rio de Janeiro cada vez se afastam mais do Carnaval. Sem demagogia, temos de reconhecer que mantemos acesa a brasa do samba graças ao interesse de uma facção da juventude universitária pelo futuro da cultura no Brasil. E isso diz respeito a todos nós - de Edu a Batatinha. Quando João Gilberto, de volta aos Estados Unidos, recusou-se a cumprir um contrato em São Paulo, um jornalista afoito acusou-o de temer a concorrência com a "nova fase" da música brasileira e de estar desatualizado em relação a ela. Eu acho que a gente não se deve deixar enganar: estamos ainda na primeira etapa; a inevitável eclosão da bossa nova é, comercialmente, natimorta e, culturalmente, vive safando-se do comércio, tanto quanto precisa dele, o que lhe possibilita apenas andar bem devagar. Estamos tentando achar a linha perdida. Há uma facção da juventude brasileira que não aceita com facilidade a aplicação que se faz - na interpretação de fenômenos publicitários que sustentam algumas mocinhas tão suburbanas quanto Emilinha Borba e rapazes a meio caminho entre beatle e Francisco Carlos como ídolos - de frases (mais ou menos inteligentes) ditas na Europa a respeito de juventude e “ritmos alucinantes" porque, encontrando-se bem mais diante de uma realidade difícil mas paLPável do que do caos, não as pode considerar aplicáveis a ela própria. Bem mais preocupados em assumir e resolver essa realidade, os jovens brasileiros exigiram-se rever suas tradições e criar uma cultura verdadeira que os sedimente como brasileiros. No seio da música, esta é a primeira investida: as primeiras discussões que foram postas ainda não foram ultrapassadas. Esta terminou sendo, também, a primeira investida publicitária, em grande escala, da música brasileira: na feira onde balanço, bostelá e monkey se equivalem, é que tentamos vender a nossa busca do samba em paz.

Caetano Veloso.

ÂNGULOS, REVISTA DOS ALUNOS DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, 1965.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005. 

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