Quando eu estava preparando meu segundo LP (1970)
Quando eu estava preparando meu
segundo LP (aquele para o qual Rogério Duarte fez uma capa com mulher e dragão
e retrato oval), escrevi um texto prafrentex para a contracapa. Durante o
período de gravações recebi em São Paulo a visita de Fernando Lôbo (autor de
"Chuvas de verão", música que vim a gravar algum tempo depois na
cidade de Salvador, onde gozei grilado quatro meses de confinamento). Era uma
visita profissional; ele vinha buscar o texto da contracapa e marcou, pelo
telefone, um encontro no Patachou pedindo que eu o levasse. Eu disse o.k. mas
não achei o texto na hora de sair nem nunca mais. À mesa do restaurante, eu
informei Fernando da perda e ele me informou da necessidade de voltar na manhã
seguinte para o Rio com tudo pronto para imprimir a contracapa: caso contrário
o disco atrasaria um mês. Como eu preferia que o disco saísse péssimo do que
atrasado, concordei em aceitar o papel e a caneta que ele me oferecia enquanto
me ameaçava com a terrível informação. Reescrevi ali mesmo o babado todo que eu
pensava ter esquecido. Enquanto eu trabalhava, as pessoas conversavam.
Inclusive comigo. “Eu gostaria de fazer", eu ia tentando lembrar, “uma
canção de protestos de estima e consideração, mas esta língua portuguesa me
deixa louco", eu escrevi e imediatamente percebi que não tinha escrito
rouco, como da primeira versão. Cortei louco e escrevi rouco em seguida. Não
sei se foi isso que deu a Fernando a idéia de reproduzir meu manuscrito na
contracapa do disco ou se ele já havia falado nisso antes. Só sei que concordei
com essa idéia para não dificultar as coisas: na época eu teria preferido que o
texto saísse datilografado; algum tempo depois eu preferiria impresso mesmo;
hoje, não sei. De qualquer forma, eu gostava da piada. Não tanto da que
resultou do erro, mas da piada original. Por nada: apenas porque dizer que a
língua portuguesa me deixa rouco era verdade, enquanto dizer que a mesma me
deixa louco dava a impressão de que eu tinha em mente ressaltar mais uma vez o
fato de nós falarmos e escrevermos numa língua não-exportável. Quando, na
verdade, eu não estava sentindo nada disso. Pelo contrário: estava alegríssimo,
compondo desbragadamente, sem sonhar com exportação.
Hoje, vivendo na Inglaterra e
escrevendo em inglês, tudo isso me parece mais engraçado. A língua inglesa me
deixa louco. Simone Weil escreveu que, para um crente, é tão perigoso mudar de
religião quanto para um escritor mudar de língua. Eu não tenho nada com isso
que eu não sou escritor: eu sou cantor de rádio.
Mas é uma loucura escrever letra
de música na língua dos outros. A gente nunca sabe se está dizendo o que está
dizendo. Na verdade, eu sou irresponsável o bastante para viver e, quando
escrevo em inglês, não faço senão brincar com as formas familiares de letra de
música americana, misturando-as com uma espécie de tradução para o inglês de
algumas idéias e bossas que eu trouxe da minha experiência na native tongue.
Mas acontece que, além de irresponsável, eu sou muito curioso. De modo que não
me é difícil escrever essas letras de música em inglês: o que me enlouquece é a
curiosidade de saber o que é que elas dizem. Talvez em outro lugar essa
curiosidade já tivesse sido satisfeita, mas na Inglaterra é fogo, porque os
ingleses não falam. Quando eu mostro algumas dessas músicas que eu estou
fazendo agora a um amigo inglês, ele ou diz que é fantastic e fica em silêncio,
ou fica em silêncio de vez. De forma que, até hoje, eu não conheço direito
minhas novas músicas. Mas assim mesmo subi no palco do Royal Festival Hall para
cantá-las. Nunca estive tão calmo e displicente num palco: não me sentia
responsável por coisa nenhuma, nem sequer sabia direito o que estava dizendo.
Foi superbacana. Um sarrete. Era o avesso do show de despedida que nos foi
permitido fazer no Teatro Castro Alves, onde todo mundo sabia de tudo. Aqui
ninguém sabia de nada: Gil estava cantando e tocando genialmente seu violão
enquanto eu tomava Coca-Cola um pouquinho, dançava um pouquinho. Ficamos no
palco uma hora cantando aqueles negócios. Para mim alguma coisa, não tudo,
alguma coisa se traduziu (muito pouco na verdade: apenas vi que aquilo era o
avesso do show do Castro Alves) quando eu cantei “Asa branca", a única
canção que eu cantei na última flor do Lácio. Só posso dizer que tentei fazê-lo
da maneira mais inculta e mais bela possível.
Caetano Veloso.
O PASQUIM, 26 DE MARÇO DE 1970.