Sem patente (1992)

Gil é um grande inventor que não registra patente. Sua imensa vaidade exercida com demasiada modéstia e seu desprezo inocente pela própria grandeza são as duas faces dessa lua meio negra e meio escondida que é a música da sua pessoa. Lua que, no entanto, brilha de doer em meus olhos. Como falar de um meta-irmão, de um companheiro de amor e guerra que não merece ser chamado de amigo porque a palavra "amigo" não o merece?

Suponho que Gil inventou o samba-jazz-fusion e a toada moderna - coisas que não lhe interessam. Ele também criou o neo-rock-n'-roll brasileiro e a nova cultura musical afro-baiana — que lhe interessam muito, mas cuja paternidade ele não reivindica e cuja responsabilidade não aparece no que ele se permitiu fazer depois. Ele não olha pra trás. Eis por que eu quase cedo à tentação de não mencionar a palavra “tropicalismo" neste texto. De fato, seria mais correto e mais vivo discutir com Gil o sentido do seu projeto de tomar nas mãos a barra da música como produto de mercado – projeto que culminou no LP Realce (que tanto me desagradou e que se não existisse eu não teria feito o meu Velô).

O que significa o atual trabalho de Gil à luz dessas suas preocupações mais recentes, que datam de longe, de antes de ele se dedicar à política? Seria melhor fazer perguntas assim do que cair nessa conversa de “tropicalismo" como acontecimento de máxima importância na cultura brasileira. Conversa ridícula que só serve - na sua distorção de perspectiva - para entreter os levianos e referendar a mediocridade.

Mas eu olho pra trás. Tropicalismo foi o apelido que ganhou o resultado de nossa ambição, em 67, de mudar a atitude em relação à estética, à política e ao mercado de música popular no Brasil. Queríamos nos libertar da mesquinharia e de preconceitos. Volto aqui o olhar para esse período porque talvez possa trazer daí melhor compreensão dos interesses atuais de Gil, transmúsico, dividido entre o mercado e a política. Em 1966, Gil externou sua inquietação e sua impaciência com relação ao modo de encarar o trabalho. Falou dos Beatles e da fome no Nordeste (tinha passado uns meses no Recife), da violência da ditadura militar e da cultura de massas: não podíamos mais nos manter no mundo resguardado da "esquerda" pós-bossa nova. Falou primeiro aos íntimos-Capinam, eu, Gal, Torquato, Guilherme Araújo, Rogério Duarte. E logo aos colegas em geral. Isso aconteceu em reuniões (houve mais de uma) marcadas pelo próprio Gil. Ele acreditava firmemente que todos entenderiam e que suas idéias fariam nascer um movimento que fosse de todos.

Gil não foi entendido pelos que lhe deram alguma atenção. Essa atenção era tão escassa que nem sei quantos dos envolvidos ainda se lembram de tais reuniões. Mas elas existiram e são um ponto importante no meu entendimento daquela época. E também no meu entendimento do Gil de hoje. Ser músico para ele sempre foi uma banalidade (quando um dono de bar perguntou à jovem Billie Holiday se ela sabia cantar, ela, que estava procurando um emprego como dançarina porque estava morrendo de fome, respondeu: “Claro, quem não sabe cantar?". Era inerente a ela: não dava trabalho, não era trabalho, não podia dar dinheiro): ele queria discutir o que cercava a música; queria planejar uma estratégia política, com todos os nossos colegas, de interferência no mercado que resultasse numa desprovincianização e modernização do Brasil. Seu ouvido privilegiado, seu talento fitzgeraldiano de improvisador, seus dons de violonista, tudo isso - a seus olhos - podia ser desprezado. (E, no entanto, se alguém quisesse reconstruir a história do violão brasileiro e pulasse o nome de Gilberto Gil, seria como pular os nomes Dorival Caymmi, João Gilberto e Jorge Ben, e assim essa pessoa não teria dado notícia do que aconteceu com esse instrumento no Brasil.) Assim, é o sentido daquelas reuniões de 66 que nós devemos buscar tanto no tropicalismo de 67 quanto na tentativa de Gil se candidatar a prefeito de Salvador (abortada pela provinciana mesquinharia local).

Gil um dia disse que, ao contrário de refinar sua percepção harmônica, queria terminar batendo um tambor. Bem, se eu sou alguma coisa na música, devo-o absoluta mente a ele. Sei que ele não teria muito do que se orgulhar, se reconhecesse sua condição de mestre. Mas não: finge para si mesmo que é meu discípulo e se orgulha até do que eu não sei fazer. Gilberto Gil é o homem que botou os Filhos de Gandhi de novo na rua com uma canção. Ele dá demais e não cobra. Se você tira a sua lasquinha e vai em frente, tudo bem. Mas eu digo: se você pensa que pode prescindir da visão que ele instaurou, você perde o trem-bala da História de hoje.

Caetano Veloso.

Apresentação do Songbook Gilberto Gil, Editora Lumiar, Rio de Janeiro, 1992.

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.

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