Tantas canções (2002)
Como foi que tudo isto começou? Como é que as coisas começam? No caso desses discos todos, talvez tudo tenha começado com o produtor Manuel Barenbein. Até um pouco antes. Começa, mesmo, com um compacto simples que gravei para a RCA, no comecinho da carreira, lá pelos anos 60, muito provavelmente em 1965 ou 1966. Foi quando Bethânia gravou seu primeiro LP. Meu compacto trazia duas canções: Cavaleiro e Samba em paz (essa última foi gravada pela Elis Regina, muitos anos depois). Foi a única coisa que fiz fora da Universal. Foi produzido pelo Carlos Castilho, um violonista que já faleceu.
E onde foi que tudo isto começou? Em Santo Amaro, claro. Talvez com as rodas de samba que ainda existem por lá, e que se refazem de vez em quando, nas festas de minha casa, onde a gente curtia e ainda curte um samba-de-roda, na varanda ou no pátio de casa. Hoje é menos freqüente do que quando eu era menino, mas não desapareceu. Edite do prato tocava lindamente. Minha mãe também tocava prato. Tocava-se e cantava-se aqueles sambas lindos, tradicionais, com muitas variações. Nunca parei de conhecer sambas para mim novos. Até hoje, de vez em quando, encontro pessoas de lá que cantam novos sambas que ouviram por ali.
Além dos sambas-de-roda, de refrões muito simples, que vinham da tradição oral, eu ouvia muito rádio em Santo Amaro. Tinha também uma vitrola em minha casa. Ouvi muitos discos. O rádio tocava tudo: boleros e tangos em português e espanhol, música nordestina - Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro -, muita canção sentimental e comercial, desse tipo que hoje se chama brega, versão de baladas e pop-rock americano dos anos 50, canções americanas da mais alta qualidade, às vezes em versão brasileira e às vezes no original. Vez por outra tocava Elvis Presley.
Tinha em minha casa um álbum de Aracy de Almeida cantando as canções de Noel Rosa, em 78 rotações, o long-play não existia ainda, capa feita pelo Di Cavalcanti. Meu pai, minha mãe e minhas irmãs mais velhas comentavam tratar-se de uma coisa de muita qualidade. Nesse disco tinha também uma canção que adoro, que mais tarde gravei, Meu barracão. Meu pai admirava as letras de Noel, sobretudo Três apitos. Tinha também uma coletânea de Dorival Caymmi, além de discos de Francisco Alves, Orlando Silva, Carlos Galhardo, intérpretes de quem minha mãe gostava muito.
Meus pais colocaram todos os filhos para aprender piano. Quando chegou a minha vez de estudar, fui fazer aulas com a professora Aydil. Aprendi um pouquinho, logo comecei a tirar de ouvido as canções que ouvia no rádio e acabei por abandonar as aulas. Minha mãe cantava muito, canções de peças que eram encenadas lá em Santo Amaro, na casa de uma grande senhora de engenho chamada Sinhazinha Batista, onde minha mãe morou de favor na adolescência. Ali ela participou do que se chamava na época de "dramas musicais".
Minha mãe também gostava de Gastão Formenti e de Catulo da Paixão Cearense. Adorava Catulo. Logo que estreou o filme Love Story, minha mãe foi ver e me disse: "Isso é um plágio de Ontem ao luar, de Catulo." Cantava Luar do sertão, como todo mundo, mas também coisas menos conhecidas, coisas assim:
"Quando tu vem lá de longe, meu bem,
Pisando pelos caminhos.
Vem voando atrás de ti, meu bem,
Um bando de passarinho.
Ah, cabocla dengosa, me dá um beijinho."
Esse disco de Aracy de Almeida cantando Noel foi muito importante para mim. Adoro Aracy cantando Noel, mas talvez a gravação dela de que mais goste seja Camisa amarela, de Ary Barroso. O Ary fez essa canção no estilo Camisa listrada, do Assis Valente, que é uma obra-prima. Parece uma canção inimitável. É única. Aquela coisa de se referir a outras canções é estupenda. O Ary, que queria tudo - era um compositor voraz, de um ego enorme -, foi lá e fez Camisa amarela, que acabou ficando mais bem feita e mais redonda, do que Camisa listrada. Mas falta uma coisa que se encontra em Camisa listrada: o clima misterioso que o Ary não conhecia, que vem da própria vida misteriosa do Assis, que fez também a mais famosa canção de Natal do Brasil, o Jingle Bell brasileiro - Anoiteceu -, onde na letra ele faz a seguinte suposição a respeito de Papai Noel: "Com certeza, já morreu." Ali, ele vê que as coisas não estão bem distribuídas, os presentes em geral e, em particular, a felicidade. E diz: "Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel." Para concluir: "A felicidade é brinquedo que não tem."
Minha convivência com o piano foi interrompida quando conheci o violão. Mudei-me para Salvador, para fazer o clássico ou científico, que não tinha em Santo Amaro. O Colégio Estadual Teodoro Sampaio - homenagem a um engenheiro e escritor que era preto e santamarense, hoje nome da rua mais importante do bairro de Pinheiros, em São Paulo - só ia até o 4º ano ginasial.
Em Salvador, meus pais não podiam alugar um apartamento em que coubesse um piano, muito menos transportar o piano para lá. Sem piano na capital, pedi à minha mãe um violão. Ela me deu um Giannini, baratinho, que eu achei dificílimo de tocar. É que o piano tem a música na sua frente, você sabe como é. O violão é tudo ao contrário; não é do mais grave para o mais agudo, linearmente. É aquela complicação de mão esquerda com mão direita. "Nunca vou aprender isto", eu disse. Mas logo conheci Gilberto Gil e, olhando ele tocar, eu aprendi. Gil já se apresentava em programas de TV, cantando e tocando.
Hoje tenho um piano em minha casa, que ficou como herança dentro de um apartamento que comprei, no Leblon. A ex-proprietária disse: "Sabe que estou com vontade de deixar esse piano para você?" E deixou. Mas eu não toco. Quando quero pensar alguma coisa, tocar ou compor, eu corro para o violão. Estou mais acostumado.
JOÃO GILBERTO
As portas se abriram quando conheci o trabalho de João, que me foi apresentado por um amigo de Salvador. Eu disse para o meu amigo: "Não tem nada de desafinado, é a coisa mais perfeita que já foi feita no Brasil." Deu uma guinada em minha observação das coisas. De uma certa forma, eu estava esperando por aquilo. Quando ouvi, descobri que era o que eu desejava. Era ali onde eu queria chegar. A bossa nova redimensionou tudo. Fiquei louco para ouvir mais, passei a ouvir todo dia. Primeiro, não podia comprar, não tinha, a gente ficava ouvindo no bar de Bubu, em Salvador. Importante dizer: Gilberto ligou-se logo à tradição da MPB, a Geraldo Pereira, Ary Barroso, Wilson Batista, Dorival Caymmi. Fez a ponte e a transformação.
O João Gilberto transforma a canção nela mesma. Você já sabia que a canção era bonita, mas uma vez que o João a pega, à primeira vista ele a transforma – faz isto até hoje -, mesmo sem ser um artista de grandes variações, como os grandes jazzistas. Apenas canta a melodia com uma tal variedade rítmica, que abre a possibilidade de revelar a beleza específica daquela canção mais do que nunca antes. Quando você ouve Rosa morena, de Caymmi, que é uma música linda, você sente que nunca ficou tão nitidamente revelada e tão perfeitamente realizada como quando João Gilberto a gravou. O mesmo acontece com Morena boca de ouro, É luxo só e por aí vai. Tudo o que ele pegou. Você vê, em show, ele cantando Coqueiro velho; é a coisa mais linda do mundo. Já é lindo com Orlando Silva, mas João adensa as harmonias, é um espetáculo.
João Gilberto é "O samba em pessoa". Esse era o apelido de Aracy de Almeida. Mas João é que é o samba em pessoa, porque traz tudo do samba: O comentário, a jogada da voz com o violão. Ele traz a escola de samba, o samba-de-roda, a Rádio Nacional, os experimentos do Radamés Gnatalli tentando até os violinos e os fagotes, a ginga do samba, traz os morros cariocas, a história do samba comentada e sentida, de uma maneira quase sobre-humana, quase divina.
O aspecto de cantar cool, com pouco volume, foi muito comentado quando o João apareceu, porque ainda era regra que os cantores tivessem grande voz. Porém, não era um procedimento inédito, nem no mundo, nem no Brasil. O Mário Reis era um caso notório e não houve quem não lembrasse do Mário quando o João apareceu. Apesar de quê, João nunca fez muito eco a esse parentesco. Apenas anos depois, quando convidou Rita Lee para participar com ele de um programa de televisão, cantou com ela Juju e balangandãs, canção de Lamartine Babo que tinha sido lançada pelo Mário Reis e que fora uma marca na vida daquele intérprete. Na intimidade, diversas vezes eu vi o João cantar Voltei a cantar, música também composta pelo Lamartine e também para ser gravada pelo Mário Reis. Feita especialmente para ele, em um dos seus inúmeros retornos à carreira musical.
Como muitas pessoas de grande ouvido musical de sua geração, João Gilberto era fã de Orlando Silva. Todo mundo que realmente tinha ouvido musical era fã de Orlando Silva. Até hoje, o João fala: "Orlando Silva, em seu tempo, foi o maior cantor do mundo." Opinião do João! E Orlando cantava mesmo divinamente bem.
Tinha uma voz grande, brilhante, bonita, tinha uma entonação especial, aqueles voleios no meio da nota musical. Era uma grande voz. Francisco Alves também. Sílvio Caldas, por exemplo, cantava com mais sobriedade. O canto dele parecia mais com a fala do que os desses todos. Quando criança, eu tinha uma simpatia maior pelo Sílvio por causa disso. Mas o João Gilberto já confessou que não gostava muito do Sílvio Caldas, porque não o considerava muito musical. Achava ele que o "Caboclinho" não tinha aquela economia da respiração bonita para as frases ficarem bem distribuídas sobre a estrutura harmônica da canção, que o Orlando tinha.
Embora seja um cantor totalmente "desdramatizado", cool, João Gilberto tem esse fraseado com respirações longas e um virtuosismo que vem muito de Orlando Silva, além da naturalidade na interpretação do Orlando Silva. O ouvido do João parecia muito bom para quem o ouvia cantar. A música entrava com facilidade pelos ouvidos dele e com facilidade saía de sua garganta. Era uma naturalidade musical de lançar as frases com muita facilidade, muita fluência. Na composição de seu estilo, então, João acaba criando uma coisa que o afasta muito do Mário Reis - uma vez que o Mário, com sua voz pequena e nunca a emitindo com grande volume, sempre cortou as frases em emissões curtas. Às vezes até cortava palavras no meio, para que as notas fossem curtas. Isso é o oposto de João Gilberto.
Dito por Tom Jobim: "Quando o João toca violão, o violão é ele. Quando a orquestra o acompanha, a orquestra também é ele."
1964
O assunto aqui é música, discos, meus discos. Mas durante as nossas conversas para este texto, o Charles Gavin me fez uma pergunta curiosa: "Que fazia eu em março de 1964?" Isso instiga a memória, como me instiga a memória falar dos discos e das canções. Em 1964, eu estava na Faculdade de Filosofia, em Salvador. Na noite de 31 de março, participei de uma reunião com o pessoal do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE, porque me inscrevi como voluntário para ser instrutor do Método de Educação Paulo Freire - que visava a alfabetizar rapidamente pessoas que não possuíam uma educação formal e que estabelecia uma troca muito grande entre quem ensinava e quem aprendia. Entre as alternativas de participação propostas pela UNE, a única coisa que me interessou e que me despertou vontade de me dedicar. Existiam as manifestações artísticas, as montagens teatrais, eu via a tudo com bons olhos, mas não queria participar, não queria me prender àquelas coisas. Sempre considerei prejudicial para o artista o engajamento prévio com a propaganda. Sempre tive problemas com isso, tenho até hoje e terei sempre problemas com a esquerda por causa disso.
Nessa reunião, juntamente com diversos estudantes ligados à esquerda, eu soube do que estava acontecendo. Um dos orientadores recomendou que dispersássemos, voltássemos para casa, porque o golpe militar já tinha sido dado e as perspectivas não eram nada animadoras. Naquela época, eu simpatizava com os ideais internacionais do socialismo e do comunismo, embora já olhasse com péssimos olhos o que me vinha como eco da experiência soviética. Eu me sentia bastante mal com a idéia da ditadura do proletariado e com as notícias que me chegavam, de um Estado com a imprensa na mão e todos os passos do cidadão nas mãos dos dirigentes estatais.
Quando digo em entrevistas que sou liberal, digo exatamente para deixar claro que não gosto desse tipo de coisa.
1968
A partir do ano de 1968, tudo piorou. Em dezembro foi assinado o Al-5, que representou um golpe dentro do golpe, com a vitória da chamada linha dura dentro do Exército. Em resposta, as manifestações de rua contra a ditadura, que eram cada vez maiores, ficaram imensas. Embora o presidente Costa e Silva fosse, em princípio, de uma linha mais moderada e não demonstrasse a intenção de reprimir de maneira mais violenta.
Mas a insatisfação foi crescendo, as passeatas de protesto - participei de várias, a dos 100 mil inclusive - foram crescendo, tomando proporções semelhantes às da campanha pelas Diretas. E já se esboçava também uma resistência armada, que os militares não aceitavam em hipótese alguma. Hoje, os que justificam o endurecimento da ditadura àquela altura lançam mão da informação de que a luta armada se adiantou ao Al-5, e não vice-versa. Não é verdade. Reconheço que um esboço de luta armada, naquele momento, era inevitável; o que não quer dizer que fosse predominante.
As classes artística e estudantil, grande parte do clero, da imprensa, intelectuais, professores, toda essa gente ia para as ruas protestar contra o regime militar. Íamos para as ruas, nas cidades brasileiras, bradar contra a ditadura. Se havia pequenos focos de tentativas de guerrilha, isso não quer dizer que o país estivesse enfrentando uma guerrilha, e que, portanto, se justificassem atitudes truculentas - o que de fato veio a se verificar. Se as demandas da sociedade civil tivessem sido atendidas, o desfecho teria sido outro, não haveria necessidade de luta armada e a guerrilha teria sido esvaziada.
PRISÃO
Como tanta gente, também sofri as conseqüências da ditadura: fui preso e depois exilado. Mas não fiquei com bronca do país; estranho, mas eu simplesmente achava que aquilo não poderia representar o Brasil. "Eu" representava o Brasil, não aquilo. Roberto Carlos representava o Brasil, não aqueles caras que me prenderam.
Eu era inteligente o suficiente para achar que a ditadura era uma expressão do Brasil, um reconhecimento da monstruosidade que era a sociedade brasileira. E entendi isso com muita dor. E, a bem dizer, não era aquilo a maior monstruosidade da sociedade brasileira. Era a tortura. Não fui maltratado, mas do xadrez onde ficamos, eu e Gil, ouvíamos gritos de pessoas sendo torturadas durante a noite. Não fomos torturados, mas algumas pessoas ali o foram. Ouvíamos gritos lancinantes durante a noite.
Lógico que, enquanto estive fora, me incomodava que algumas pessoas estivessem aqui cantando "Brasil, ame-o ou deixe-o", enquanto eu amava o Brasil e estava impedido de entrar no Brasil. Eu ficava com raiva; mas dessa gente, dessa coisa brutal da sociedade brasileira, e não do país. Eu tinha mais saudades do que mágoa. Mas reconheço que consertar tudo isso seja muito difícil, talvez esteja a requerer uma segunda abolição.
Ainda em Londres, torci desesperadamente pelo Brasil na Copa de 70. Lembro que o então presidente militar, Garrastazu Médici, estava aqui fazendo o maior uso político do tricampeonato, mas não queríamos nem saber disso. "Médici? Quem é Médici? Quem é ele diante do futebol, dessas vitórias todas, de Pelé, de Tostão, de Rivelino?"
Colocamos uma imensa bandeira do Brasil na janela de nossa casa (onde morávamos eu com a família, Gil com a família, e Guilherme Araújo), que se via da rua. Rogério Sganzela e Júlio Bressane mudaram-se para Londres nessa época e ficaram chateados na primeira visita que nos fizeram, porque da rua já avistaram a bandeira que colocamos. E nos censuraram, com o argumento de que aqui vivia-se uma ditadura militar feroz, acharam incoerente, se decepcionaram, sugeriram que tirássemos a bandeira. Eu disse: "Nada disso! É o Brasil! Não estou nem lembrando que existe Garrastazu Médici".
MÚSICA EM LONDRES, ROLLING STONES, A ILHA DE WIGHTE O MILES DAVIS
Tivemos boas relações com a vida musical de Londres durante a nossa permanência. Íamos ver os shows que pintavam e algumas pessoas que faziam música lá. Poucas chegaram a ter contato conosco. O pessoal do The Incredible String Band, por exemplo, foi à minha casa algumas vezes. Mas eram aqueles ingleses que ficam sem falar (ainda mais naquela época hippie, em que as pessoas ficavam sem falar mesmo). O Gil chegou a ter contato com o pessoal do Traffic, ele saía muito mais do que eu lá. Eu via shows como o dos Rolling Stones, do T. REX, Jimi Hendrix, tudo o que existia por lá naquele momento.
Veio o II Festival da Ilha de Wight, em 1971 (já tínhamos comparecido ao primeiro, quando assistimos a Bob Dylan), onde vi a estréia do Emerson, Lake and Palmer, além do Miles Davis, que foi o único músico de jazz que tocou no festival. Fomos chamados ao palco, eu, Gil e Gal - que foi nos visitar em Londres e viajou para o festival conosco, juntamente com os 7 músicos da Bolha, que tocavam com ela, Arnaldo Brandão, entre eles. Aquela multidão, mais de 600 mil pessoas, e o cara do microfone anunciou:
Brazilians composers Gilbeeerrto Gil and Caietano Veloooooso! Invited to the backstage by Miles Davis!
O fato de termos nos apresentado nos deu um "botão dourado", livre trânsito. A gente ficava naquele "chiqueirinho", assistindo tudo junto ao palco. Na hora da apresentação, ficamos quase todos nus no palco, porque estávamos usando uma roupa coletiva, criação de uma artista plástica francesa. Todo mundo vestia a roupa ao mesmo tempo e ao mesmo tempo tirava. Como alguns estavam nus por baixo...
Saiu inclusive um comentário na revista Rolling Stones, sobre nossa apresentação, que dizia mais ou menos o seguinte: "O que teve de mais interessante foi um grupo de brasileiros, que ninguém sabe de onde saiu, não estavam programados, mas eram pessoas muito interessantes, que apresentaram músicas interessantes e fizeram coisas interessantes. Comparado com o que eles fizeram, tudo o que vem se apresentando até hoje no festival não passa de psychedelic muzak. Foi a primeira nota na imprensa americana ao nosso respeito."
Airto Moreira estava tocando com o Miles Davis e mandou nos chamar. Fiquei olhando lá atrás, no backstage, e não vi o Airto; vi o próprio Miles, encostado naquele corrimão de madeira que leva ao palco. Eu me aproximei dele:
- Excuse-me.
Ele me olhou com aquele olho duro e sussurrou, praticamente sem voz:
- Yes.
- Where is Airto?
Ele indicou a direção, entrei e acabei encontrando o Airto, que me trouxe de volta para junto de Miles Davis e nos apresentou. O Miles então ficou me olhando, bem de perto, olho no olho. Segurei o olhar e ficamos nos encarando. O Airto Moreira ficou tão emocionado com aquilo que ficou pulando e gritando em volta de nós dois, parecendo um ritual indígena. Quando o Gil se aproximou, deparou-se com esta cena: eu olhando para o Miles Davis, que olhava para mim, enquanto o Airto pulava em volta.
MPB: uma reflexão
Nós ouvimos há pouco tempo, em um debate na TV Educativa do Rio, a afirmação de que em nenhum outro lugar do planeta a união da poesia com a música se realize de maneira tão rica quanto no Brasil.
Não sei se é possível dizer isso, não tenho certeza. Sei que a música popular americana é a música do Cole Porter e do Bob Dylan. Brasil, para o bem e para o mal, é mais fácil a aproximação entre as áreas de alta cultura e as de cultura de massas. Talvez porque não tenhamos uma sociedade muito desenvolvida.
Os debatedores citavam a mim e ao Chico Buarque, como exemplos de realização feliz dessa união entre a poesia e a música. Pode ser o Chico, então, acho que é de uma capacidade impressionante no trato com a palavra. No meu caso, talvez admitindo ser mais "suja" a minha obra, vejo que isso se dá porque tenho ambição diferente da ambição do Chico, que é a de mexer na estrutura subjacente à criação, no ambiente que possibilita a criação; não é o caso de criar uma peça dentro do mundo dado, mas mexer nesse mundo dado.
Para mim, se torna importante justapor Um tapinha não dói – que é um funk hostilizado pela "inteligência" - com minha canção Dom de iludir (que, por sua vez, é uma resposta a uma canção do Noel Rosa, dos anos 30). Interessa-me esse tipo de atitude. Essas coisas é que compõem a minha poesia. Mais do que atentar para a palavra certa, para o verso, em que o Chico é mestre. Mas são temperamentos diferentes e projetos diferentes.
Mas o nível é alto, sim. Tanto no caso dele como no meu, é alto mesmo. Se bem que, em linhas gerais, o nível do João Gilberto é maior do que tudo isso. E o nível de Antonio Carlos Jobim como compositor, também.
E tenho dito.
Caetano Veloso.
Livro "Tantas Canções" do box "Todo Caetano". Universal Music, 2002.