Um povo doce e moreno (1985)
Santo Amaro era uma cidade bonita
à primeira vista. Quando eu era menino, a unidade arquitetônica e cultural se
apresentava logo a quem chegasse, impondo-se sem deixar dúvidas. Hoje, só um
espírito profundo e sensível pode flagrar essa beleza em estado puro por trás
das transfigurações (algumas inevitáveis e nem tão maléficas, mas algumas
imperdoavelmente inúteis e estúpidas) sofridas por essa Vila de Nossa Senhora
da Purificação. Maria Sampaio parece ter sido agraciada com superabundância
dessa profundidade e dessa sensibilidade. Um cavalinho de flecha alteando-se
lírico e místico por cima das cabeças de um povo doce e moreno: esta imagem
sintetiza para mim tudo o que é Santo Amaro, tudo o que é o amor de Maria por
Santo Amaro, tudo o que significa como trabalho fotográfico o resultado desse
amor. Isto pode servir de chave para quem não tenha, como eu tenho, intimidade
com tudo isso. Eu gostaria que as pessoas olhassem atentamente para a
fotografia acima descrita e, depois de se deixar penetrar do seu espírito,
partissem para ver (ou rever) as outras: assim já estariam preparadas. Do meu
ponto de vista, todas são comoventes. De certa forma, sinto-me presente em
todas elas. Acho que não poderia ser diferente. Não sou especialista em
fotografia, mas sei o que é uma pessoa sensível e por causa disso já convidei
Maria Sampaio para fazer a capa de um dos meus discos. Pois bem, todas essas
fotos de Santo Amaro, tiradas por Maria com tanto amor e intimidade, são como
que fotos minhas, do que há de mais longe muito longe mas bem dentro aqui.
Conheço muitas pessoas que sentirão o mesmo: pessoas de Santo Amaro ou ligadas
demais a Santo Amaro. Desejo que as que não o são possam aprender muito do seu
clima e talvez aprender muito com ele. A fachada da Igreja da Purificação, o
rosto de dona Cecília, um sobrado, tudo foi fotografado de perto, de bem perto,
quase de dentro. Como será que Maria entrou em contato com uma realidade tão
negada e descaracterizada? Não podemos saber. O fato é que ela a resgata, como se
fosse minha mãe dona Canô trabalhando para a manutenção das tradições da festa
da Padroeira, ou Maria Bethânia lavando o adro da igreja, ou Roberto Mendes e
Jorge Portugal tocantando uma chula. A única coisa que eu posso dizer como uma
espécie de agradecimento a Maria por tanto carinho por essa cidadezinha
culturalmente semidestruída mas resistente e encantada é que eu tenho certeza
de que, se meu pai Zezinho Veloso estivesse vivo, ele ia chorar de emoção.
Caetano Veloso.
Folder-convite da exposição de
fotografias de Maria Sampaio Um povo doce e moreno (5 a 23 de março de 1985),
no Núcleo de Artes do Banco de Desenvolvimento do Estado da Bahia S.a.
Posteriormente, o texto foi reproduzido no livro Recôncavo - Santo Amaro;
fotografias de Maria Sampaio, Salvador, Desenbanco, 1985.
Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.