WE GET HIGH, WE NEVER DIE (1970)
"WE GET HIGH, WE NEVER
DIE" - "A VIDA E A MORTE CALÇAM IGUAL" - "É UMA VIAGEM TÃO
VIVA QUANTO A MORTE, NÃO TEM SUL NEM NORTE NEM PASSAGEM" - "ATÉ
EXPLODIR COLORIDO NO SOL, NOS CINCO SENTIDOS, NADA NO BOLSO OU NAS MÃOS."
"JIMI HENDRIX DIES AGED
TWENTY FOUR: DRUG OVERDOSE."
Mick Jagger ao receber a notícia:
"WE ARE COMPLETELY STONED". (Como terá sido a manchete do Globo?). Um
bubble: "Legal, ele quis curtir o barato da morte".
Jimi Hendrix, dois dias antes de
morrer: "COMECEI A PENSAR NO FUTURO. EU JÁ DEI A ESTA ERA DE MÚSICA ‘TUDO',
ESTA ERA DEFLAGRADA PELOS BEATLES CHEGOU AO FIM: ALGUMA COISA NOVA TEM DE VIR E
JIMI HENDRIX TEM DE ESTAR NESSA".
No palco, na Ilha de Wight, não
havia nada que não fosse perfeito espelhamento da maquiagem da vasta platéia:
uma guerra interna frouxa nem de longe ameaçava mudar o sentido daquele
acontecimento: um gauchismo tipo derrubar as-prateleiras-as-estátuas-as-estantes-etc.
não pode mesmo querer ser grande novidade dentro de um universo musical &
poético que comporta os Rolling Stones de “Salt of the Earth", a busca do
sal da terra fora das fronteiras da cidade festival. No palco, na Ilha de Wight,
não havia nada que não fosse o que todo mundo já sabia. No palco, na Ilha de
Wight, não acontecia nada. Ele entrou sorrindo e mascando chicletes, leve, meio
voando voando sobre as botas de salto alto, sorrindo, testando o som da
guitarra, incrivelmente bonito, doce, muito muito bonito, as pernas enxutas,
rebolando um pouco, safado, como um moleque das ruas da Bahia, sorrindo,
testando o som da guitarra, vindo tranquilo do fundo do palco. “THE JIMI
HENDRIX EXPERIENCE”. O apresentador anunciou errado: o conjunto que levava esse
nome dissolveu-se há mais de um ano quando Jimi voltou para os Estados Unidos,
onde, depois de algum tempo de silêncio, formou um novo grupo chamado Band of
Gipsies. Nesse momento estavam no palco Jimi Hendrix, Billy Cox (do Band of
Gipsies) e Mitch Mitchell (do Experience). Os três nunca haviam tocado juntos
antes e não pareciam ter ensaiado muito para aquela noite. Jimi pediu a Mitch
Mitchell que começasse a tocar enquanto ele tentava com os engenheiros de som
controlar a amplificação da guitarra, que, visivelmente, não estava dando a
sonoridade que ele queria. O público esperava com a paciência dormente dos
hippies. Jimi vinha até a frente do palco, sorria, testava o som, voltava para
os engenheiros que corriam de um lado para o outro do palco nervosos, enquanto
Mitch Mitchell batia qualquer coisa e o tempo passava. Sem que o problema fosse
resolvido, Jimi iniciou "Spanish castle magic" e seus companheiros o
seguiram não muito assustados. Ele tocava e cantava provisoriamente: entre uma
estrofe e outra ele se voltava para os engenheiros e fazia de suas
improvisações um teste de som. Como nunca dava certo, começava a rir e voltava
a cantar, a pulsação natural da sua música enfrentando microfonias.
Ele havia entrado em cena com um
projeto difícil em mente: conseguir ligar aquela multidão sem utilizar os
recursos cênicos que contribuíram tanto para a sua fama quanto a genialidade de
sua música.
"Não saio daqui enquanto
vocês todos não estiverem ligados."
Durante uma hora ele tocou e cantou
lutando contra os amplificadores. O público parecia entre frio e assustado:
eles haviam gritado e aplaudido de pé quando o nome de Jimi Hendrix foi
anunciado e agora nem sequer sabiam quando um número terminava, pois, além de
não haver finais convencionados pelo conjunto, cada canção ao chegar ao fim
transformava-se num novo teste de som e algumas foram interrompidas na metade.
No entanto, em todos os momentos, sem que nada ajudasse a percepção disso,
estava presente a beleza do trabalho de um dos maiores artistas que já houve.
“Vocês querem aquelas coisas velhas?" – "Todas elas”, eu respondi e
ele me olhou com um sorriso sacana - "Então vamos lá." Aí ele iniciou
a segunda hora de sua apresentação: uma antologia de tudo o que ele deu a essa
era. Sex & Blues. Ele abria as pernas e botava a língua pra fora e tocava
guitarra com os dentes e punha o braço da guitarra entre as pernas e a
acariciava. E o público resolvia se ligar porque agora sim reconhecia Jimi
Hendrix, mas não conseguira ir muito longe: algo permanecia incômodo, havia um
distanciamento. Jimi sorria sabendo o que isso significava: a frieza da
primeira hora fora mais real que a animação redescoberta. Essa animação era
nostálgica: tudo aquilo estava no passado e no entanto ele estava presente,
novo em folha, saudável. Ele estava provisoriamente ali, mas estava ali mesmo,
presente, vendo tudo. E seu olhar quebrou o espelho. Poucos dias depois ele
diria a um jornalista que a era dos Beatles chegara ao fim e que ele queria
engordar. Os jornais ingleses comentaram que na Ilha de Wight Jimi Hendrix
havia feito a pior apresentação de sua vida. Mas seu sorriso naquele momento, a
saúde com que ele movia as pernas imitando-se a si mesmo, a eternidade de sua
música naquele momento - tudo isso mostrava o esboço e a exigência de um novo
projeto. Essa era de música acabou. A era da música? A era do despedaçamento
planejado e colorido, a era de uma juventude que se cria com o sal da terra, a
era da embriaguez e do lazer mais ou menos perigoso, a era das crianças de
classe média on the road, a Era da pele, dos cabelos. A Era das drogas, que,
segundo o Globo e o Evening Standard, mataram Jimi Hendrix. Quem é o sal da
terra? Essa última ofensiva não foi capaz de impedir que os Globos e os
Standards da vida continuassem existindo. O que é o sal da terra? Que aquilo
que Jimi Hendrix vislumbrou antes de morrer seja mais eficaz.
"A EXPRESSÃO 'FUNDIR A CUCA
DE ALGUÉM' É VÁLIDA. AS PESSOAS GOSTAM DE QUE VOCÊ FUNDA A CUCA DELAS. EU QUERO
FORMAR UMA BANDA GRANDE E CRIAR UM NOVO TIPO DE MÚSICA. AGORA NÓS VAMOS FUNDIR
A CUCA DAS PESSOAS, MAS, ENQUANTO ELA SE FUNDE, NÓS VAMOS CONSTRUIR ALGO PARA
PREENCHER O VAZIO."
Caetano Veloso.
O PASQUIM, 27 DE OUTUBRO DE 1970.
Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.