O retrato com Bob Wolfenson (2021)

Eu fazia essa careta desde menino. Tudo começou com a versão de "Sansão e Dalila", de Cecil B. DeMille, filme que me maravilhou quando o vi no Cine Roma, numa das minhas poucas idas a Salvador na infância. Amo esse filme até hoje. Mas, naquela altura, a canastrice de Victor Mature serviu à evolução de minha personalidade. Foi um herói masculino que me inspirou e que eu cultuava sozinho.

Me impressionava a mobilidade de suas sobrancelhas — e eu me sentia capaz de enfrentar leões, derrubar templos. Eu devia ter uns 7, no máximo 8 anos. Depois que cresci, a interpretação de Mature se mostrou um tanto cômica — embora a esperteza do diálogo do casal central da trama bíblica, mormente na cena em que ele vai roubar a tenda luxuosa que ela montou como uma armadilha para prendê-lo e destruí-lo, nada perdesse de sua mestria cinematográfica, fato exemplar do lugar central de Hollywood na formação do que chamamos cinema.

Uma versão cômica das levantadas de sobrancelha do ator desenvolveu-se comigo. De vez em quando eu a faria na sala de aula do Teodoro Sampaio em Santo Amaro ou do Severino Vieira em Salvador. Ou na frente do espelho.

A casa onde nasci era cheia de mulheres. Meu pai era o único homem no meio de um grupo formado por três de suas irmãs (duas solteironas e uma viúva), três de suas sobrinhas, e três filhas, uma delas adotiva, além de minha mãe, claro, cuja idade era próxima a das sobrinhas de meu pai. Só aí nasceu o primeiro homem. E eu fui o terceiro que veio no gênero masculino.

Meu pai tinha de responder por toda a masculinidade existente naquela casa aonde chegamos os três.

Lembro como fato curioso essa minha identificação com Sansão/Mature. A beleza de Hedy Lamarr me deslumbrava como deslumbrava a todos. Mas, crescendo num mundo de mulheres, eu a via com encantamento mas não com identificação. Essa reflexão só veio muito depois.

Mesmo na altura, no entanto, era para mim quase um segredo, de todo modo uma experiência solitária, a identificação com o herói macho. Meus irmãos e eu nunca escondemos a identificação feminina que nos parecia natural no ambiente em que crescemos.

Essa minha macheza infantil desdobrou-se em destinos de vida e na careta que exagerei ano a ano.

Foi minha feminilidade que me fez perguntar a amigos num barzinho de Sampa, barzinho cujo nome repeti mil vezes ao longo da vida mas que, na idade em que estou, me foge, anos 70/80. 'Quem é aquele judeuzinho lindo?', ao ver o garoto de cabelos cacheados e olhos verde-azuis.

Bob Wolfenson, se bem me lembro, ficou um pouco surpreso por eu saber de antemão que ele era judeu. Gostei tanto dele que, caso ele fosse gay, talvez tivéssemos namorado. Mas ficamos amigos, sem que eu escondesse essa vaga suave malícia da primeira vista. O humor judaico do gatinho sempre enriqueceu nossos encontros.

Bob é uma das pessoas de quem mais gosto nesse mundo, sempre verdadeiro e do bem.

Era fotógrafo. Ou estava virando fotógrafo. Tornou-se profissional de primeira e, conhecendo minha sobrancelha victormaturiana — até de uma fotografia colorida que saíra na capa da revista "Bondinho", mal eu voltara de Londres —, me pediu um dia para refazer a careta diante de sua câmera.

Aqui sobre minha bancada onde repousa meu computador neste momento, vejo uma gravura que reproduz essa foto: algum desenhista/fã me mandou e eu não sabia onde botá-la. É a síntese de tudo o que contei nos parágrafos acima.

Caetano Veloso, 10/05/2021.

Fonte: Nossa (Uol). Depoimento que fez parte das comemorações dos 50 anos de carreira de Bob Wolfenson. 

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