Paulinho Camafeu

Ele era um menino que assistia Camafeu de Oxóssi no Mercado Modelo. Sua graça, sua inteligência, sua vivacidade fizeram dele uma figura única na Cidade do Salvador. Era um baiano autêntico e tinha se tornado o que se chamava de uma figura folclórica. De perto, sempre um encanto para o interlocutor, um estímulo à vida mental. Compondo ‘Que bloco é esse?’, canção que logo foi gravada por Gilberto Gil, Paulinho não apenas deu voz à reação espontânea - de surpresa, encantamento, curiosidade - que provocou nos soteropolitanos a aparição do Ilê Aiyê: ele inaugurou uma era nova na cidade.

A autoimagem de Salvador mudou com o surgimento do Ilê - e a canção de Paulinho foi o poema-notícia desse acontecimento. É uma canção duplamente histórica: é a História contada no calor da hora e é ela mesma inesquecível. Artistas como O Rappa, Criolo, anos depois de Gil, retomaram seus versos e notas. É um marco que anunciou um marco. Salvador afirmando-se negra e temperando melhor o Brasil. Neste ano em que o Carnaval da cidade comemora os 30 anos do que foi chamado de ‘Axé Music’ com intuito pejorativo, mas que virou o jogo em pouco tempo, o nome de Paulinho Camafeu não foi saudado como devia na imprensa nacional. Alguns comentaristas e colunistas baianos o citaram, mas a história desse fenômeno de vitalidade artística do nosso povo foi contada nos grandes veículos do Eixão sem que o nome de Paulinho fosse lembrado.

O fenômeno seria impossível sem a invenção do trio elétrico e sem o surgimento, pouco mais de duas décadas depois, dos blocos afros. A subida do ritmo de afoxé para cima do caminhão e a introdução do canto nos trios - ambas façanhas de Moraes Moreira - abriram o caminho para Chicletes, Danielas e Ivetes. O pagodão - chamado de Suingueira no Recife e estruturado sobre a base da chula do Recôncavo - não teria se desenvolvido sem esses antecedentes. Mas, com todas as honras feitas à Banda Reflexu´s, o acontecimento ‘Fricote’ foi marco inaugural de toda essa saga musical, poética, técnica e empresarial de que não podemos não nos orgulhar.

E ‘Fricote’ (com sua linguagem fotográfica e desprovida de intenções de juízo de valor, como se quem canta fosse a própria Baixa do Tubo e não alguém que a observa e comenta) é obra de Paulinho Camafeu (em parceria com Luiz Caldas). Como Ruy Barbosa e Macaco Beleza, Jorge Amado ou Marighella, Paulinho Camafeu é um dos nomes mais importantes da história cultural da cidade do Salvador.

Caetano Veloso, 12/02/2015. 

Ontem morreu Paulinho Camafeu. Como eu já disse uma vez, o autor de "Que bloco é esse" anunciou o Ilê Aiyê, que anunciava uma nova era. Foi o gesto de a Bahia autodeclarar-se negra. Isso se deu pelos versos de Paulinho. Nunca esqueceremos, nunca poderemos esquecer esse fato.

Caetano Veloso, 30/11/2021. 

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