Narciso em férias (2020)

Quando penso no número de pessoas que morreram em prisões brasileiras a partir de 68 (e que foi pequeno se comparado ao número de vítimas argentinas ou chilenas da década seguinte); quando penso nos que sofreram tortura física, ou nos que foram expulsos do país em 64 e só puderam voltar na anistia em 79, concluo que minha prisão de dois meses foi um episódio que nem sequer mereceria referência. Muitos dos que sofreram maiores maus-tratos - ou que foram presos mais vezes e por mais tempo - passam rápido pelo assunto, muitas vezes em tom de descaso. [...] As muitas páginas que aqui dediquei ao episódio da prisão se explicam por ser este um livro sobre a experiência tropicalista vista de um ângulo muito pessoal meu. E se justificam por revelar o quanto eu era psicológica e, sobretudo, politicamente imaturo.

O trecho acima abre o capítulo que se segue, no Verdade Tropical, ao que leva o título "Narciso em férias", que aqui ressurge, separado, na forma de livro autônomo. Introduzi-lo com essas ressalvas parece-me adequado e mesmo necessário, uma vez que, apesar de esse ser o capítulo dentre os daquela longa história da passagem do tropicalismo por mim e minha por ele que me parece mais satisfatório do ponto de vista literário, a importância dada aos fatos narrados é mesmo - e ainda hoje parece - desproporcional. Não quero absolutamente ratificar as palavras duras e erradas do jornalista Pedro Alexandre Sanches, que sugeriu ser minha exposição do sofrimento sob a ditadura uma jogada de autopropaganda. Nem mesmo corroborar o raciocínio que levou o crítico literário Roberto Schwarz a fazer a pertinente (ainda que tendenciosa) pergunta: por que surpreender-se com a resposta violentada repressão quando foram feitas tantas e tão gritantes provocações? O então jovem jornalista mostrava ressentimento. Talvez ele sinceramente considerasse imerecido o prestígio de que desfrutamos, por não ver tanto valor artístico no que fazemos, o que é de seu direito. Nada justifica a desconfiança moral que sua sugestão indica. Quanto a Schwarz, sempre me pareceu que sua eleição da suspicácia frankfurtiana de Adorno nunca se harmonizaria bem com o respeito intelectual que meu livro, surpreendentemente, mereceu a seus próprios olhos. É curioso que o estilo da prosa o entusiasme quando narro eventos de minha primeira juventude, período em que eu, sem suficiente capacidade crítica, aderia à onda de esquerda dominante em meu meio, e deixe de poder encantá-lo à medida que tal capacidade cresce - o que culmina em negar o valor do capítulo que ora vira livro, em exato desacordo com minha própria apreciação. Não. Ao abrir esta apresentação com o parágrafo que comenta, com exigência psicológica e política, o texto que vem a seguir, não confirmo o que disseram ou insinuaram o pequeno jornalista e o grande crítico. Ao contrário, refuto ambos ao relembrar que o texto que agora eu mesmo convenci os editores a publicarem em separata, eu o publiquei juntamente com a observação de que não me iludia quanto à sua força denunciadora ou seu poder combativo. Não que o considere nulo quanto a esses aspectos: a minuciosa narração que revela o caos organizacional e legal da ditadura; a descoberta, por experiência física e emocional, e não por leitura de dados estatísticos, de traços fundos deixados em nossa sociedade pela escravidão; a decifração de mecanismos psicológicos complexos a que acedi a partir do encarceramento, são conteúdos que justificam, a meu ver, a publicação desse texto como um trabalho enriquecedor do acervo crítico do leitor brasileiro. Ele é também uma construção literária em que encontro razões para satisfação estética. Sobretudo, parece-me que este, que é meu escrito a que atribuo maior valor, entra na cena atual da vida política brasileira de modo abrasivo. Que toda ou todo jovem que sabe ler possa tê-lo nas mãos é algo que salva o fato de minha existência pessoal ter se tornado um assunto público.

Caetano Veloso, 2020. 

Apresentação do livro "Narciso em Férias".

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