O transtorno da cuíca, segundo Alberto Mussa (11/08/2008)
O TRANSTORNO DA CUÍCA, SEGUNDO ALBERTO MUSSA |
11/08/2008 2:35 pm |
Aqui fala o Hermano: Outro dia, no meio desta Obra em Progresso, recebi email de Alberto Mussa - meu escritor brasileiro contemporâneo favorito (já escrevi sobre os motivos de minha admiração por sua obra neste prefácio), autor de Elegbara, O Trono da Rainha Jinga, O Enigma de Qaf, O Movimento Pendular, além de ser o tradutor/organizador de Os Poemas Suspensos: Al-Muallaqat - anunciando que estava concorrendo com samba enredo para o desfile de 2009 da escola de samba Salgueiro. A letra diz assim: GRES Acadêmicos do Salgueiro - Carnaval 2009 Presidente: Regina Duran Canto uma herança Festa na aldeia De ocidente a oriente Qual é o povo Quem cruzou o mar Menina, quem foi teu mestre? Não me lembrava de que Mussa era também compositor de samba. Fiquei alegre com a redescoberta e, como ele é um transescritor (e conhecedor admirável da história da cultura africana no Rio de Janeiro), achei bacana sugerir que lesse o nosso blog e publicasse por aqui suas reflexões sobre samba e transamba. Hoje ele me mandou o seguinte texto: “Meus amigos, atendendo a um gentil convite do meu querido Hermano, deixo aqui umas reflexões, um tanto incipientes, sobre o conceito de transamba. Em primeiro lugar, é importante tentar definir samba. Em termos musicais, a coisa parece simples: todo mundo reconhece a batida que define o gênero, criada nos arredores do Estácio, no princípio do século 20. Historicamente, no entanto, há um pequeno problema: antes de surgir o samba do Estácio – do samba que a gente hoje reconhece como samba –, havia outras batidas, outras formas rítmicas também chamadas de samba, como o samba de caboclo (versão profana do cabula, batida característica dos candomblés de angola); ou o “maxixe” gravado por Donga, o famoso “Pelo telefone” (que os especialistas não classificam como samba propriamente dito). Pode ter sido uma mera questão de evolução lexical; mas acho que há algo mais profundo nisso: os que chamaram de samba a forma rítmica surgida no Estácio queriam dizer alguma coisa. Talvez uma história diga mais que reflexões abstratas. Um dos instrumentos de percussão de origem africana que logo foram introduzidos na execução do samba do Estácio foi a cuíca. Na África, a cuíca era um tambor sagrado, representava a misteriosa voz dos mortos. Poucos iniciados no culto dos antepassados podiam assistir à sua execução, os demais ficavam respeitosamente escondidos em suas respectivas casas, apenas ouvindo, aterrorizados. Os sambistas do Estácio profanaram a cuíca, fizeram dela um tambor carnavalesco. De voz dos antepassados, passou a ser a gargalhada que se intromete de repente, no meio da percussão. Reparem que a maioria dos grandes cuiqueiros (isso pode ser visto, por exemplo, nas baterias das escolas de samba) toca de boca aberta, rindo, gargalhando – postura rara num tocador de surdo ou de repique. É curioso que se fale normalmente em “choro” da cuíca, como se o riso embutisse ou fosse a mesma coisa que um lamento. Aliás, em “Pintura sem arte”, Candeia define o que é samba pra ele, e fala que o samba é esse lamento, não se reduz à música ou a ritmo. Mas esse já é um outro assunto. O samba, portanto, é uma “profanação”. Entendo esse termo como uma espécie de radicalização da alegria, da irreverência, da liberdade. No samba de caboclo, profanavam-se as antigas danças de umbigada, a semba, ligadas a ritos de fertilidade e de fecundação; no “Pelo telefone”, o maxixe dos salões foi ainda mais carnavalizado, arrastado pelas ruas e levado aos morros. Foi esse conceito que os velhos do Estácio quiseram traduzir quando importaram a palavra. O samba, portanto, já nasceu trans. Não é apenas um gênero musical, definido por uma batida particular. É uma atitude existencial, nasceu como atitude existencial, uma atitude de radicalização da irreverência num contexto histórico de extrema opressão (talvez o Candeia entre aí: samba é lamento porque guarda a memória de suas origens trágicas, quando era perseguido, quando era crime cantar samba). Não é o samba, evidentemente, o único gênero de música que expressa alegria e irreverência. A diferença é que no samba essas coisas são estruturais. Sem essa atitude, não existe samba. Precisamente por ser mais uma atitude que uma forma musical, tão logo surgiu se ramificou em diversos subgêneros: passou a ser também samba-choro, samba de partido-alto, samba de enredo. Por não estar reduzido a um mero padrão rítmico, o samba sempre teve capacidade de se adaptar e de se inserir em novos contextos e ambientes. Por exemplo, a famosa polêmica entre Noel Rosa e Wilson Batista não foi mais que uma discussão teórica sobre o samba como atitude. Wilson era partidário do samba-quilombo; Noel achava que, para que o samba continuasse a ser samba, tinha que ser samba-cidade. E o samba se transformou com Noel, se transformou com Paulo da Portela, Cartola e Silas de Oliveira. Virou samba-canção e sincopado; ganhou até uma bossa nova. É um gênero em transcurso. Me parece que o transamba é um ponto desse transcurso, mais um galho dessa grande árvore. Mas vai continuar a ser samba se mantiver a atitude existencial primitiva, que eu não consigo ainda definir muito objetivamente, mas que a gente sente o que é. abraço forte, alberto mussa” |
Samba é atitute. Rock é atitude. Transamba é samba, é rock, é transrock. Transatitude.
Penso que o transamba mais que um galho da grande árvore está mais para o conceito de rizoma, ele sai desta originalidade, desta coisa de raiz e alcança outras “vertentes”, mesmo mantendo “a atitude existencial primitiva”, que de fato não dá pra se definir objetivamente por não ser objetivo, mas estar associado à subjetividade do samba, um lance de sentimento, o “batidão do coração”, como diz a canção “gatas extraordinárias”; creio que esta “atitude existencial primitiva” está implícita na canção do Tropicália 2, uma das minhas prediletas, desde que o Samba é Samba, creio que alí está a síntese do transamba rizomático, alcançando outras linhas, preenchendo espaços, cruzando os tempos, desde das batidas dos negros pela dor ou pela alegria, passando pelos nossos “heróis” da cultura, ou seja, por Donga, Noel, Ataufo Alves, Assis Valente, Chico Buarque, Paulinho da Viola e tantos, tantos mais…
Dentre os muitos feixes conceituais que convergem para um entendimento sobre o samba, relembrando algumas leituras e conversando com compositores do gênero, aqui na Bahia, o feixe identitário nacional é, para mim, bastante significativo. Brasil sem samba é o mesmo que Argentina sem tango. Além do mais, o samba também fala muito de si, reforçando a sua trajetória em nossa vida cultural. E vamos sambar, sempre sambar e até transambar, suprasambar, brasisambar, reificando assim o que já é por natureza a alma da Nação! rasec1963@gmail.com
Con respecto a la transformación que busca Caetano (llámese Transamba, Transrock, Transtupid, Trans-x), habrá que ver cuán preparados están los oídos brasileros y del mundo para el nuevo sonido que propone Caetano. Quizás, con el tiempo, Caetano sea a la samba lo que Piazzola fue al tango, salvando las distancias claro.
Tudo bem, feixe identitário nacional, embora o próprio termo identidade seja ele mesmo um paradoxo (idêntico ao idêntico); mas saquei e sinto este sentido, até pelas longas construções identitárias que nos bombardeiam nos passeios históricos das canções; mas me pergunto ( e este espaço do blog do Caetano coordenado pelo Hermano é muito legal por nos dar tal possibilidade) se o samba é a alma da nação, como algo já encarnado, as outras musicalidades (baião,o rock, o sertanejão, o funk, hip-hop, meu Deus, o brega, a MPB (aquela mesma da elite dos anos 1960 que os mais conservadores fazem nariz torto ao ver as músicas ditas das massas) que são? Gostaria mesmo de entender a questão do samba, porque ao mesmo tempo que ele tem o status de ser representatividade do “povo brasileito” como “cartão postal” , como este sentido de nacionalidade, por outro lado ele não pode ser o “pobre samba meu”, é preciso algo mais que o “samba” apenas como representatividade da nação, há que se alcançar outros horizontes para o samba, e nisto ele é trans…
Engraçado como a interpretação do samba pelo Alberto Mussa vem trazer ao conceito de samba o que já foi feito com o conceito de rock. Ou seja, o samba não é somente o rítmo, mas sim uma atitude (não gosto muito da palavra atitude, mas foi a palavra usada pelo Alberto) Poderia disser também ser o samba um estado.
Outra elemento que vejo trazido do rock para o samba pelo Caetano é o vício rítmico. O samba tem espaço para variações rítmicas que acontece a todo o momento. Ao contrário do rock, mais rígido e repetitivo.
Então são dois elementos que consigo compreender num primeiro contato com o transamba: subjetivo e concreto, a questão existencial expressa pelo samba e o rítmo sendo tratado pelo rock.
Márcia disse:
Fevereiro 28th, 2009 at 11:30 pm
Conheci Alberto Mussa hoje! Bom saber que a memória da cultura carioca ganha uma nova geração de absoluto talento e de imensa sensibilidade… Sobre a concepção de transamba buscarei “sentir” um pouco mais. Abraços, Márcia !