Release do álbum "Mãeana" (2015)
Ana Cláudia sempre me impressionou pela profundidade de sua feminilidade. O jeito de ela aparecer pela primeira vez a desconhecidos, os objetos que ela colecionava ou construía em sua casa, tudo tinha a marca dos sonhos de menina, dos projetos inconscientes de mulher. Recortes de papel, bonecos, adereços de brinquedo mesclados aos de aparência étnica, tudo trazia ao tato as imagens de poesia escrita por moça. Poderia ser a coisa mais enjoativa que se possa imaginar. No entanto, não era. Era demasiado pessoal, original, único: insinuava uma forma de agressividade, tinha um tom de petulância, de desabuso. Intrigava tanto que o doce era cortado antes de as papilas o detectarem. Eu não sabia que ela cantava. Fui sabendo aos poucos da futura existência pública da banda Tono. Quando ela chegou aos palcos, seu canto hipnotizava guitarristas e leigos. Estavam em sua voz as borboletas de papel, as tiaras de miçangas, tudo, mas nada disso estava do lado de fora do seu timbre. Guardado no estilo radicalmente cool, esse acervo fervia sob a calmaria. No entanto, ela queria mostrar, mais e mais, pontas desse iceberg em brasa: nalguma pintura no rosto, nalgum adereço de mão, num punhado de lantejoulas colocado em lugar surpreendente. Envolta na exuberância dos seus colegas de grupo, ela era discreta demais e, ao mesmo tempo, um pouco estridente demais em pequenos detalhes. Um dia, Danilo Caymmi pediu-lhe que cantasse Nunca mais, essa obra-prima de Dorival. E meus amigos músicos me falavam de sua versão dessa música como de algo superiormente especial. Por vários acasos, tardei muito a ouvi-la. Mas quando o fiz, me deparei com uma surpreendente confirmação do que entusiasmava meus amigos. Não era parecido com o que eu esperava. E era melhor do que isso. Agora, mãeana, Ana Cláudia Lomelino, lança seu primeiro álbum solo. Bem Gil, na produção, organizou os sons de modo tão minuciosamente delicado e fluido que a gente já se contentaria apenas com a beleza da produção de estúdio. Mas ele e ela foram mais longe: as canções foram escritas para ela, pessoas da sua família biológica, dotadas de musicalidade e de amor pela música (essas duas coisas não são idênticas) participam da aventura. Ana Cláudia vem com todo o seu mundo. Há, entre os críticos profissionais, uma facilidade arriscada que consiste em dividir as novas cantoras entre as que insistem no cool e as que se mostram "viscerais". Em geral, os que falam nisso tendem a preferir as extrovertidas. Considero que seria igualmente equivocado escolher as outras. Para ouvir uma cantora como Ana Cláudia, é preciso estar livre disso. Faz cerca de uma semana que me convenci de que, tecnicamente (mas não só), a nova cantora brasileira mais dotada é Anitta. Ouço Ana Cláudia ou Ana Cañas, Tulipa Ruiz ou Tiê, considerando essa perspectiva. Ana Cláudia, pois que aqui é dela que estamos falando, é cantora de verdade, original e artista de sua arte. Não é apenas que eu goste dela (e eu gosto muito): é que ela tem conteúdo próprio, mistério e vida íntima em seu canto. Eu próprio compus uma canção, como meus colegas compositores que estão neste disco, baseada nas imagens que Ana Cláudia nos mostrou e esconde de nós.
Caetano Veloso.
Release do álbum "Mãeana" de Ana Cláudia Lomelino em 2015.