A voz da lua (1994)

O melhor filme de Fellini (Noites de Cabíria) e o seu pior (Julieta dos espíritos) são com Giulietta Masina. Isso, a meu ver, demonstra quão inexoravelmente o desenho dessa figura e o espírito dessa mulher atravessam a totalidade da obra desse artista tão genuíno quanto se pode admitir que um cineasta o seja.

Não tenho dúvidas em atribuir a uma autêntica deformação profissional de críticos e diretores de cinema o destacarem eles 8 e 1/2 de entre os filmes de Fellini para inclusão nas (de resto necessariamente furadas) listas de "melhores de todos os tempos"; uns e outros se satisfazem com a fruição das intermináveis e nem sempre muito autênticas confissões sobre como sofrem os homens que dirigem filmes e com as pouco convincentes tiradas metalingüísticas feitas por um cineasta que, definitivamente, não é "do código", e sim "da mensagem".

Claro que a piada anti-Antonioni (“hoje em dia estão na moda os filmes em que não acontece nada – pois bem, no meu vai acontecer TUDO") é genial, e há todo o brilho das seqüências de “memória", além de maravilhosos retratos de irritantes jovens senhoritas aspirantes ao estrelato. Mas, no total, o filme deixa a clara sensação de algo desequilibrado, com o peso dado a certas seqüências - e a duração delas relativamente a outras e ao tempo total do filme - não propriamente legitimado. É um problema conseqüente à auto-indulgência da segunda metade de La dolce vita - quando o ex-colaborador neo-realista resolveu soltar de vez a imaginação (e, diríamos, vulgarmente mas com muita propriedade, dada a chatice da seqüência da última festa em que Mastroianni faz um sermão atirando penas de um travesseiro pela sala, a franga).

Ela já vinha de certa polêmica com alguns setores do suporte crítico do neo-realismo, cujas exigências considerava uma prisão: nem só da vida material dos homens pobres, queria ele dizer, deve viver o cinema, mas também da imaginação e da aventura espiritual de todos os homens. Mas foi aproximando-se de uns poucos personagens extraídos de ambiente materialmente miserável que ele encontrou a libertação; os pobres de A estrada da vida (o Brasil é o único país que traduziu o título de La strada), por serem funâmbulos e saltimbancos, trabalham eles mesmos com o imaginário e, portanto, permitem ao diretor passar quase imperceptivelmente para a zona do sonho, sem abandonar os trapos e os cortiços que eram a marca registrada da escola, e para a zona do espiritual, sem perder a força bruta da anônima tragédia física dos desvalidos desse mundo que era a substância dos filmes de seus mestres.

Antes disso, ele já tinha dado mostras claras de que caminhava nessa direção: Abismo de um sonho (Lo sceicco bianco) e Os boas-vidas (I vitelloni) são justamente os filmes que deram ensejo à deflagração da discussão entre os neo-realistas ortodoxos e Federico Fellini. Mas La strada não apenas levou até muito mais longe o gesto do cineasta, como também - e isto é que é o mais importante - - venceu a discussão e acabou com ela.

Estou convencido de que algo do impacto produzido por esse filme em tantas pessoas de minha geração se deve do fato de que ele representou um triunfo ideológico sobre a ortodoxia neo-realista. Mas isso só se fez possível por Giulietta. Suas delicadas caretas, tão gráficas quanto as de Charles Chaplin e tão etéreas quanto as de Harry Langdon; o ritmo do seu corpo pequeno, tão vivo como o de um pequeno animal vivo e tão simplificado e convencional quanto o de uma figura de desenho animado, decidiram a grandeza do filme - e a ultrapassaram: Gelsomina se tornou, como D. Quixote, como Carlitos, como Hitler, como Mickey Mouse, como o Crucificado, uma imagem concentrada que vem ao mundo nitidamente para dizer o que só ela diz.

Ao mesmo tempo, e por isso mesmo, sua figura passou a ser uma espécie de assinatura de Fellini. Mas, expondo uma figura que é, antes de tudo, uma assinatura de si mesma, Masina passou a ser um problema da identidade autoral felliniana - um problema que ele, tendo a grandeza de reconhecer que se originava no fato de ter sido desde o início uma solução insubstituível, dedicou-se a recomeçar a resolver a cada dia, com um carinho e um cuidado admiráveis.

Ouvi de muitos amigos meus italianos e informados palavras duras contra ela: "Giulietta Masina representa tudo o que há de pior na Itália"; "O que atrapalha Fellini é o lado sentimental e carola, ou seja: Giulietta Masina" etc. O próprio Glauber me disse em Londres, em 1971, vindo de Roma, respondendo a uma minha pergunta sobre Fellini: "Ele continua lá, o problema é que ele não se separa daquela anã horrorosa". Eu não posso deixar de pensar nessas observações cada vez que revejo aquela magnífica cena de Amarcord, na verdade uma parábola, em que um louco sobe ao topo de uma árvore imensa e permanece ali durante horas aos gritos de “quero uma mulher", sem que nada ou ninguém consiga tirá-lo de lá ou apaziguar sua insatisfação: só a chegada de uma freira anã é capaz de acalmá-lo e fazê-lo pôr de volta os pés no chão. Não posso deixar de pensar em Giulietta quando vejo essa freirinha - e em Fellini gritando seu enigmático desejo da árvore arquetípica.

A mulher do diretor em 8 e 1/2, interpretada por Anouk Aimée, é o alvo das confissões de culpa de uma caricatura de marido burguês, o qual, no entanto, sendo um artista, vive obcecado na construção de fantasmas. Separa-se aqui o que na “vida real" está inextricavelmente amalgamado: a mulher de Federico Fellini, diferentemente da do Marcello do filme, é o fantasma número um, aquele que abriu a porta para toda a legião. Giulietta Masina estava representada ali sempre mais autenticamente nas figuras grotescas ou angelicais - nas crianças, nos adivinhos, nos velhos malucos – do que na imagem a um tempo reivindicativa e resignada da mulher do diretor, papel que ela própria, de resto, parecia desempenhar à perfeição na vida de Fellini.

A tentativa de ir adiante no enfrentamento dessa questão – também de realizar um 8 e 1/2 para Giulietta – levou-o a Julieta dos espíritos, em que é dado à própria Giulietta o papel de mulher burguesa. A escolha de um ator fisicamente parecido com Fellini não significava apenas uma compensação para o fato de, desta vez, o marido não ser cineasta. Essa escolha confirma a deliberação de tocar em áreas perigosas - e que se revelam tão mais perigosas quanto mais se é inconsciente da grandeza do perigo. A beleza de Mastroianni era uma convenção estética, como a urbanidade moderna de Anouk Aimée uma simplificação para efeito de comunicação. Agora víamos na tela, tentando livrar-se da falange de espíritos que ela mesma trouxera para ali, uma Giulietta cuja atmosfera lunar e lunática parecia aprisionada a uma aparência distinta - e cujo gênio para o grotesco-angelical estava preso a um compromisso com o que se costuma chamar de “uma boa atuação".

Numa entrevista dada aqui no Brasil, ela declarou que não gostava muito de Julieta dos espíritos e que considerava seu trabalho ali não muito bom, reafirmando que sua melhor atuação tinha sido em Noites de Cabíria. Possivelmente, na história do conflito felliniano com relação à presença de Giulietta em sua vida e sua obra, Julieta dos espíritos foi idealizado como um presente para a mulher e para a atriz. Se o foi, foi quase um presente de grego. Todas as tolices que são ditas a respeito da atriz Giulietta Masina devem a esse filme - não pelo julgamento que se faz de se sua atuação nele, mas porque ele cria em torno dela – e com valor retroativo - uma expectativa equívoca.

Uma expectativa que põe em discussão coisas muito acima das quais ela se colocou irremediavelmente desde o início. Ela repetia sempre que aquela Giulietta de Julieta dos espíritos não tinha nada a ver com ela. Eu acrescentaria: nem a mulher do diretor de 8 e 1/2, nem a mulher em Cidade das mulheres - se não quisermos chegar até Gelsomina e encontrar ali toda a culpa de Federico por ser uma pata sobre aquela flor. Não, nem a freirinha. Nenhuma dessas imagens parciais da mulher poderia aspirar a representá-la. A estrutura e a inteireza de E la nave va…, o imenso navio de Amarcord, a valsa de Nino Rota para o palhaço de La dolce vita, essas aparições que inundam a alma chegam mais perto. Ela é a voz da lua.

Os franceses não admitem o cômico feminino. Lévi-Strauss e Godard já se manifestaram veementemente a esse respeito. A tradição americana da mulher engraçada - sobretudo a combinação, na figura da loura burra, do ridículo com o sexual - parece-lhes uma aberração. Há um acerto universal que permite e estimula que a comédia se sirva do sexo, mas não o sexo da comédia. O amor - claramente na sua acepção de eufemismo para sexo - aparece como incompatível com o humor numa canção de Irving Berlin. A mulher-palhaço, que os franceses não concebem e que foi levada, na América, aos extremos de Mae West, Lucille Ball e Judy Holliday, é uma entidade que representa em si mesma um desafio. Buscando tocar essa linha tênue que liga Giulietta Masina a Marilyn Monroe (a rainha das louras-burras e seu avatar mais transcendental), eu, que nasci no país que produziu o genial poema:

Amor

humor

- o mesmo país onde nasceram Dercy Gonçalves e Regina Casé -, escrevi, em meados dos anos 60, este estranho paradoxo: "Giulietta Masina, considerada sem atrativos, representa uma mulher que vende o próprio corpo no filme As noites de Cabíria. Marilyn Monroe, que representa o tempo todo, nos filmes e na vida, uma mulher cujo corpo tem alto valor de venda, é considerada uma mulher atraente. Mas, por sob a maquiagem e as roupas grotescas que foram desenhadas para ridicularizar a prostituta do filme, percebe-se um corpo pequeno mas firme e bem torneado; enquanto por trás da pintura e do figurino composto para criar o glamour da outra, adivinha-se a flacidez dos músculos e a desproporção das partes".

O estereótipo do palhaço triste já era gasto quando La strada foi concebido e realizado. Giulietta foi fator decisivo para que a abordagem por Fellini desse lugar-comum reluzisse de originalidade. O fato de ela ser uma mulher foi fator decisivo para que isso se desse através da sua pessoa. As histórias de Fellini com Sandra Millo e outras mulheres opulentas, sua paixão deslumbrada e publicamente alardeada pela beleza de Anita Ekberg, a própria confissão auto-analítica da obsessão por mulheres imensas como tendo origem em sua infância, tudo isso exacerba o contraste entre, de um lado, o ideal de mulher que Fellini supostamente compartilha com sua platéia, e, de outro, a pequenina provinciana católica e caricata que é sua mulher real.

Mas os bons resultados do paciente cuidado de Fellini para com essa mulher e a entidade que ela veio a incorporar em seus filmes (não podemos falar no cuidado dela para com ele) são perceptíveis na tranqüilidade com que ela incluiu, num texto que escreveu sobre La strada, muitos anos depois do seu lançamento, a declaração: "Eu queria ser o personagem que Anita Ekberg interpretou em La dolce vita"; e na força da permanência da perspectiva instaurada por Noites de Cabíria quanto à questão do desenvolvimento do conseguido em La strada: ali há virtuosismo numa área que é só dela, há uma obra rica e acabada que faz com que possamos dizer - contradizendo sua afirmação de que "Fellini é um artista, eu sou atriz apenas, e basta" – que a mulher que morreu anteontem foi uma grande artista e que não basta ser ator ou atriz, mesmo grande, para entrar no páreo com ela, que nos leva a rever sempre melhor Julieta dos espíritos e a ver da maneira certa Ginger e Fred, e também a entender o sentido maior da mesura feita por Chaplin numa entrevista ao New York Times: “She is the actress I admire the most" ("Ela é a atriz que eu mais admiro").

P.S.: quando eu era adolescente, sonhava com freqüência que encontrava Giulietta Masina e Federico Fellini, e conversávamos. Não sei o conteúdo dessas conversas, mas lembro a intensidade da emoção. Assim, defendendo meus próprios fantasmas benfazejos contra a fúria esnobe da crítica, que, por vezes, precisou tentar empurrá-los para baixo na escalada do alpinismo intelectual, fiz uma canção com o nome dela e a gravei num disco. Algum tempo depois, eu estava em Bari, no Sul da Itália, dormindo num hotel, e minha mulher atendeu uma chamada telefônica de Roma, “da parte da senhora Giulietta Masina", que queria saber de mim e da canção. Só fui informado quando acordei, algumas horas depois. Não tinha tempo de parar em Roma na minha viagem de volta para o Brasil. Paolo Scharnecchia, um amigo italiano que é um grande conhecedor de música e tinha acesso aos Fellini, ofereceu-se para entregar o disco a ela. E o fez. Voltei à Itália por duas vezes depois disso, e dessas vezes ficando em Roma. Ela não me procurou mais. Concluí, sem nenhuma surpresa, que ela não gostou da música.

Caetano Veloso.

FOLHA DE S.PAULO, CADERNO MAIS!, 3 DE ABRIL DE 1994.

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