Anjos Tronchos (Caetano Veloso)

Uns anjos tronchos do Vale do Silício
Desses que vivem no escuro em plena luz
Disseram: vai ser virtuoso no vício
Das telas dos azuis mais do que azuis.

Agora a minha história é um denso algoritmo
Que vende venda a vendedores reais,
Neurônios meus ganharam novo outro ritmo
E mais e mais e mais e mais e mais.

Primavera Árabe - e logo o horror.
Querer que o mundo acabe-se:
Sombras do amor.

Palhaços líderes brotaram macabros
No império e nos seus vastos quintais
Ao que revêm impérios já milenares
Munidos de controles totais.

Anjos já mi ou bi ou trilionários
Comandam só seus mi, bi, trilhões
E nós, quando não somos otários,
Ouvimos Shoenberg, Webern, Cage, canções…

Ah, morena bela
Estás aqui
Sem pele, tela a tela:
Estamos aí.

Um post vil poderá matar
Que é que pode ser salvação?
Que nuvem, se nem espaço há
Nem tempo, nem sim nem não. Sim: nem não.

Mas há poemas como jamais
Ou como algum poeta sonhou
Nos tempos em que havia tempos atrás
E eu vou, por que não? Eu vou, por que não? Eu vou.

Uns anjos tronchos do Vale do Silício
Tocaram fundo o minimíssimo grão
E enquanto nós nos perguntamos do início
Miss Eilish faz tudo do quarto com o irmão.

© 2021 Uns Produções / Sony Music - Álbum Meu Coco - Caetano Veloso.

Comentário do autor: "Anjos Tronchos é uma canção que terminou ficando extremamente densa. Vivemos hoje mergulhados num mar de algoritmos, possibilidades diversas de redes sociais e aparatos tecnológicos que avançam muito depressa. Eu não tenho tanto domínio sobre o assunto, mas acredito que canções são capazes de obter reflexões na mente de quem as ouve." (Caetano Veloso para o site TechTudo, 2021).  

"Não faltam razões para que a gente esteja amargo. Acho que essa canção tem um tom sombrio, mas não deixa de observar aspectos luminosos que vieram com essa revolução tecnológica. Aparecem ali poemas como jamais, pensando nos poetas concretos, principalmente Augusto de Campos, e coisas com desenvolvimento dos computadores. E no fim, no último verso, tem o caso da Billie Eilish. Ela já cresceu com a mente dentro desse mundo desenvolvido da tecnologia digital e tem um tipo de criatividade ligada a isso, que é luminosa e bela. Então há coisas também positivas. Mas a base da canção é sombria." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2021).

"Embora eu não conheça muito a questão da tecnologia e das suas consequências, eu fiz uma canção que parece mexer em questões muito maiores do que seu autor é capaz de dominar. Tem muitas canções que tiveram resultados políticos, na formação da cabeça de gerações, de áreas da sociedade, e que não foram feitas por uma pessoa que conhecesse teoricamente a complexidade daquele assunto. Eu terminei pensando: “Deu para fazer uma canção que pode ser como uma dessas”". (Caetano Veloso em post nas redes sociais, 2021).

“Eu cheguei à palavra algorítimo porque fala-se muito nisso, quando se refere a realidade digital, ao mundo da computação. Mas eu não entendo nem muito de matemática nem o conceito, nem muito da cultura que se desenvolveu a partir do computador e da internet e, evidentemente, tenho contato com isso. Quando comecei a canção pensei que nem fosse completar, porque não sabia o suficiente sobre o assunto, mas os versos foram aparecendo para que pudesse se tornar uma canção. Eu gosto muito de Billie Eilish, mas jamais pensei em fazer uma parceria com ela. Não imagino que pudesse haver interesse do outro lado. Ela apareceu no final da canção como exemplo de uma coisa boa que vem dessa evolução tecnológica que nos deu computadores pessoais e a internet. Como a canção fala de muitas coisas horrendas que a gente deve a isso, é bonito falar de coisas boas. Primeiro falei do sonho de um poeta de fazer poesia visual mais complexa, eu me referia a Augusto de Campos, principalmente, e com esse desenvolvimento foi possível, e, no final, me veio Billie Eilish. Terminou como uma frase enigmática, mas muito simples. Fiquei sabendo que ela já havia usado esse nome das redes sociais ‘Miss Eilish’, e termina de uma forma muito simples, num informalismo informal (risos), Ela fez aquelas coisas, se tornou importantíssima e famosa com essa coisa neo-neo-cool fazendo tudo do quarto dela com o irmão." (Caetano Veloso para o portal Popline, 2021). 

“O que eu penso sobre tecnologia é uma coisa que varia muito. Às vezes eu me irrito, às vezes eu me encanto, às vezes eu acho enigmático e às vezes simplesmente eu acho vital. Anjos Tronchos é uma canção sobre redes sociais, internet, computadores, em suma, tudo que foi inventado e continua sendo desenvolvido pelos anjos tronchos que se movem no Vale do Silício.” (Caetano Veloso em post nas redes sociais, 2021).

"Não tenho intimidade com computadores nem hábitos informático-digitais. Gosto do que resta de democrático na Wikipedia, mas volto aos livros. Pensei nos poucos mi, bi, trilionários que comandam as redes e usam os algoritmos. Mas não achei que completaria uma canção. Achei curioso que viessem novas ideias-versos e eu chegasse a completar o que pôde ser considerado uma canção. Pensei em Gil e em seus Cérebro EletrônicoPela internet e Quanta, de letras reflexivas. Tal como ele, não estudei antes para compor a canção falando do que aprendi. Fiz a partir do que não sei e fui esperando, como ele, que isso me levasse a estudar. Ainda espero." (Caetano Veloso para o storyline do Spotify, 2021).

"Gil tinha mais interesse por esse tema do que eu. Ele escreveu muitas coisas sobre esses negócios desde aquele período [do tropicalismo] e ao longo dos anos. E eu, não. Fiquei mais interessado agora. Foi meio surpreendente pra mim o negócio dos ‘anjos tronchos no Vale do Silício’. Não uso muito internet, não tenho smartphone, não vejo rede social, não estudo o assunto." (Caetano Veloso para a Folha de S.Paulo, 2021).

"Essa imagem dos anjos tronchos do Vale do Silício ficava voltando à minha cabeça. Eu não acompanho redes sociais, não entendo muito dos assuntos ligados à internet. Assim, pensava que a canção que se insinuava em minha cuca era impossível de ser feita. Mas pequenos novos pensamentos, pequenas novas frases, na verdade versos, iam se somando aos iniciais. Depois de umas duas semanas vi que, entre as músicas que já estava gravando, essa crescia como eu nunca esperaria. Ganhou letra longa e não necessariamente irrelevante. Com o disco pronto, ela terminou virando o primeiro single a ser lançado. Chamei Pedro Sá pra tocá-la porque achei que a secura dos enunciados pediam som de banda Cê. É distópica, mas há clarões como o amor feito tela a tela e a menção aos poemas de Augusto de Campos." (Caetano Veloso para o portal GZH, 2022).

"Me veio à cabeça por causa desse tema dos computadores, laptop, internet, smartphones, redes sociais, esse mundo. Veio uma frase: "Os anjos tronchos do Vale do Silício". Pensei: "Silício dá uma rima boa, poderia fazer uma música". Mas eu não tenho smartphone, não entro em rede social. Aí lembrei do poema de Drummond, "um anjo torto desses que vivem na sombra". "O Poema de Sete Faces", que começa assim e eu já citei até em outra música. Outras frases foram vindo, e aí eu fiz aquilo com melodia e já comecei até a pensar em Pedro Sá pra tocar. Só que eu pensava: "Não tenho conteúdo dentro da minha cabeça sobre esse assunto pra concluir uma canção". Terminei fazendo estrofes demais, que nem se repetem na música. Não há refrão, não há repetição de estrofe. As ideias vinham vindo. E me lembrei de Gil, que fez muitas canções sobre esses assuntos sem conhecer teoricamente. Mas as canções são com letras reflexivas. Meu negócio não parece com o dele, mas a situação parece. (...) Há no disco muitos traços politicos que eu não tinha muita consciência anterior, mas que eu vi na feitura das canções, e nessa sem dúvida há. Tem um verso que fala: "Palhaços líderes brotaram macabros". É um verso só, mas está adensado aí todo um pensamento, talvez até muito comum. Mas adensado em um verso nessa sonoridade, ganha uma força que irradia pro resto da canção toda. Depois, isso se desdobra, quando abre um tom mais lírico e lamentoso sobre a Primavera Árabe. Porque a Primavera Árabe se deveu em grande parte às redes sociais. No entanto, muito daquilo resultou em um horror. Desde o que houve no Egito até o que aconteceu com a Síria. Esse lamento sobre a Primavera Árabe se soma, ou expande, o que já está muito condensado no "palhaços líderes brotaram macabros". Ou seja, são resultados abomináveis, aterradores, desse desenvolvimento tecnológico." (Caetano Veloso para a Revista Noize, 2023).

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