Avant-garde na Bahia (1995)
Lembro do pianista David Tudor, em 1961-62, apresentando peças de John Cage no Salão Nobre da Reitoria da Universidade da Bahia – aquele prédio gozado do bairro do Canela que sempre me parecerá maravilhoso –, a sala cheia, o professor Koellreutter observando. Uma das composições previa que, a certa altura, o músico ligasse um aparelho de rádio ao acaso. A voz familiar surgiu como que respondendo ao seu gesto: "Rádio Bahia, Cidade do Salvador". A platéia caiu na gargalhada. A cidade tinha inscrito seu nome no coração da vanguarda mundial com uma tal graça e naturalidade, com um jeito tão descuidado, que o professor Koellreutter, entendendo tudo, riu mais do que toda a platéia.
Nunca esqueci o nome de David Tudor, mas não foi aí que o nome de John Cage fixou-se em minha mente. No entanto, o fascínio por aquela música feita de silêncios (numa das peças as teclas eram apenas tocadas, sem serem pressionadas, pelos dedos enluvados do pianista) e acasos não me abandonou mais. Não sei dizer por que eu já chegara de Santo Amaro preparado para coisas assim. Eu simplesmente ansiava por elas. Um conto de William Saroyan lido acidentalmente na infância, Clarice Lispector na revista Senhor, o neo-realismo italiano, mas sobretudo João Gilberto tinham me levado a uma idéia do moderno com a qual eu me comprometi desde cedo. Isso descreve como o tema já tinha-se tornado meu desde Santo Amaro, mas não explica as razões para que fosse assim. Chegar a Salvador no ano em que eu ia completar dezoito anos significou para mim a entrada no grande mundo das cidades. Nenhuma metrópole depois disso teve sobre mim sequer o décimo daquele impacto. O fato de a Universidade estar tão presente na vida da cidade, com seu programa de formação artística levado a cabo por criadores arrojados chamados à Bahia pelo improvável reitor Edgard Santos, fazia de minha vida ali um deslumbramento. Eu gostava da cidade em si mesma, sua paisagem, sua arquitetura, o estilo de sua gente. Mas minha irmã Maria Bethânia, que não aceitava ter saído de Santo Amaro (ela tinha apenas treze anos), foi conquistada para Salvador - e para o mundo – pelas atividades culturais promovidas pelas escolas do reitor e pelos museus de dona Lina. Glauber já era o garoto que absorvia essa atmosfera e a transformava em ação, dirigindo um grupo de jograis, curtas-metragens e o suplemento cultural do Diário de Notícias, procurando de forma exigente extrair o máximo da situação, quando Bethânia e eu chegamos.
O que aconteceu na Bahia do final dos anos cinqüentas ao início dos sessentas (mostro aqui ter aprendido a lição de português de Risério) é ainda um aspecto pouco conhecido - embora determinante – da história recente da cultura brasileira. Este livro vem fazê-lo inteligível. Para mim, Risério revela nele o sentido de minha própria inserção no mundo. Sua leitura será proveitosa – além de prazerosa, dadas a clareza e a vivacidade do estilo - também para corrigir perspectivas de quem queira entender o Brasil cultural da segunda metade do século. Herdeiro legítimo - posto que indireto porque de segunda geração – daquele movimento, morador da Cidade da Bahia, onde tem assistido às energias criadoras migrar da academia para os afro-blocos (com a sede do Olodum tendo sido construída por dona Lina), Risério é a pessoa ideal para a tarefa. Ele não tem idéia de quanto lhe devo por este livro. Para além do agradecimento pela lisonja de considerar o que tenho feito em música popular como exemplo (ao lado de Glauber!) de bom resultado da empreitada do reitor, preciso dizer-lhe - e a quem nos leia - que nem mesmo o modo como alinhavei lembranças neste prefácio me seria possível sem a leitura de seu livro. É como se eu não soubesse bem quem eu era antes de lê-lo.
Minhas reminiscências mais sinceras me obrigam, no entanto, a externar um reparo que não significa censura ao autor, antes depoimento complementar aos que ele tão bem colheu. Parece-me que a figura de Eros Martim Gonçalves saiu relativamente injustiçada, ou desproporcionalmente apequenada, no painel. Basta dizer que talvez a Escola de Teatro tenha centralizado nossa visão - de Bethânia e minha - do impulso modernizante da época. E Glauber repetiu inúmeras vezes que a montagem da Ópera de Brecht tinha-lhe dado tudo. Martim montou Claudel e Brecht, Tennessee Williams e Camus, como os Seminários de Koellreutter apresentavam Brahms e Gershwin, Cage e Beethoven. Além disso, há algo de desequilibrado em negar-se o status de vanguardista a um diretor-educador corajoso como Martim num livro em que não se o nega a uma figura (grandiosa, fascinante, amável) como a do professor Agostinho da Silva, cultor – paradoxal e heterodoxo como era – de saudades do catolicismo lusitano medieval.
Mas o fato é que em Deus e o diabo na terra do sol temos Eros e Agostinho - e na Tropicália temos Terra em transe. E Risério aqui conta, pergunta e explica por quê.
Caetano Veloso.
Prefácio ao livro Avant-garde na Bahia, de Antonio Risério. São Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1995.