Carta a Dora kramer (2001)

Você me fez feliz uma vez, ao escrever para mim por causa de comentários que fiz sobre suas opiniões lidas em sua coluna. Agora - sei que involuntariamente - você me deixou muito triste com sua interpretação de minha fala sobre Chico Buarque. Discordo veementemente da caracterização que você fez dele como "simplificador de idéias". Nada na vida pública de Chico Buarque justifica essa expressão.

Assombra-me que uma declaração minha possa ter levado alguém a usá-la a respeito dele. O que eu quis salientar foi que, em gritante contraste com meu próprio estilo, o Chico não exibe o processo de elaboração de seu pensamento político; ele apenas apresenta gestos pontuais nítidos resultantes das conclusões a que chegou. E que nele está amadurecida a idéia de não poder contribuir atuando como um arremedo de cientista político. Na verdade, só citei o Chico porque na entrevista coletiva que precedeu à exclusiva que dei ao Globo as conversas sobre política viraram uma grande discussão reflexiva que já beirava o ridículo. Depois, citei o jeito certeiro do Chico como modelo invejado. Quando li a menção na entrevista, não gostei. Parecia uma jogada de má-fé para levar o leitor a concluir que, embora dizendo-me modesto, eu provava que era politicamente mais sofisticado do que ele. Não sou. Se houvesse uma discussão pública entre mim e o Chico sobre política (se ele se desse a esse desfrute), você ficaria genuinamente surpresa. Mas Chico é verdadeiramente modesto: não vai para jornal dar showzinho de inteligência e informação (e eu asseguro que ele é mais informado e atento do que eu).

Em sua nota (que li com grande atraso por causa dos shows que fiz segunda e terça-feira aqui no Rio) você deu, limpidamente, a interpretação que eu evitaria a todo custo. Não por querer ficar bem com o Chico (claro que quero isso também), mas simplesmente porque não acho justo. Sobretudo se se leva em conta o resultado político do episódio. Você pode não ter tido a intenção, mas sua nota, desautorizando intelectualmente Chico, desfere golpe contra o PT e fortalece o grupo de Fernando Henrique. Chico não tem externado opiniões sobre sucessão, mas seus leitores o vêem nitidamente à esquerda das minhas dúvidas. Você escreveu como se você e eu fôssemos o centro e criticássemos a esquerda através da desqualificação de Chico como pensador político. O que está muito longe do meu desejo e do meu juízo. Confiante na admiração que você demonstra ter pela minha confusão, peço que exponha o essencial desta carta em sua coluna.

Se eu não intervenho, aceito o esquema (este sim simplista) Lula versus FH e, ainda por cima, trabalho para este último às custas da reputação intelectual de Chico Buarque.

Caetano Veloso.

Jornal do Brasil. 24 de novembro de 2001.

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