Cinema e público - imitação da vida (1961)

Ainda na crônica passada eu disse que Imitação da vida é um "dramalhão". (Coisa que provocou muita discussão.) Aliás, esse é um termo que muito repito, uma expressão de que muito abuso para denominar certo tipo de filme. Mas, que vem a ser um "dramalhão"?; o que o caracteriza, por que digo isso de determinados filmes, o que os fazem diferentes dos outros, como identificá-los?

Bem, partindo de uma definição de dicionário (DRAMALHÃO Drama de pouco valor, mas cheio de lances trágicos artificiais; drama em que as situações são exageradas ao máximo resultando numa falsa dramaticidade), podemos dizer que as características do dramalhão são o exagero e a falsidade. Diz-se que um filme é dramalhão quando sua história é falsa; sua feitura, ruim; e seus incidentes, exagerados. A artificialidade está na caracterização da pessoa humana quase sempre: as reações psicológicas do homem são forçadas ao gosto do autor da história. Também é falsa a relação do homem com a sociedade, com o meio; isto é, dramalhão é filme sem ideologia filosófica ou sociológica. O único interesse é fazer o público chorar. Mas acontece que, no intuito de fazer o povo chorar, eles fazem tudo, inclusive desrespeitar o próprio homem. Na ânsia de fazerem a gente chorar, apelam para todos os meios, lícitos ou não!

Para que entendamos isso melhor, tomemos um exemplo qualquer: Imitação da vida, de que já falamos, por exemplo. Quando disse que esse "filme" era um "dramaIhão", e assim o ataquei, não foi sem motivo; sei que a maioria não concorda comigo, mas tenho esperança de que um dia muitos compreenderão.

Bom, fiz ver que dramalhão é um filme sem tema, sem mensagem filosófica, sem outro objetivo senão fazer o povo chorar (e conseqüentemente encher de dinheiro os bolsos do produtor). Ora, Imitação da vida é um filme sem tema. Senão vejamos: de que trata o filme? Do amor, do ódio, do problema do racismo nos Estados Unidos da América, do drama dos que tentam o teatro na Broadway?... Não! De nenhum desses assuntos se ocupa Imitação da vida, embora aparentemente lá estejam o amor, o ódio, o racismo e o problema dos atores. Digo isso porque esses assuntos não são discutidos, nem sequer abordados pelo "filme": entram apenas (e, certamente por acaso) como pretexto das situações bisonhas que são apresentadas. E como são esses temas "apresentados" sem a mínima preocupação, como eles os abordam sem lhes dar a menor importância, os problemas são desrespeitados com as mais descaradas mentiras, as mais deslavadas calúnias. Assim eles falsificam os homens e seus problemas. O caso do racismo, por exemplo, em Imitação da vida: então se trata de um grande problema a partir de incidentes inverossímeis? Então o único grito de revolta contra o preconceito racial, o desespero da filha da negra, é falsificado e a menina se nos apresenta como um monstro? Então o certo é ser serviçal e consciente da sua "inferioridade racial", como sua mãe?!

Basta pensar um pouco e se vê que com todos os outros assuntos acontece o mesmo desrespeito, a mesma mentira. Em benefício das rendas da produtora, são desrespeitados os maiores problemas da atualidade e o próprio homem.

Desse modo, não posso entender como vocês podem amar obras que desrespeitem sua vida e vocês mesmos; não sei como conseguem identificar-se com aquelas coisas falsas que se movem na tela e que, sem dúvida, não são criaturas humanas; não entendo como podem ver seus dramas naqueles incidentes exagerados e MENTIROSOS.

O que se disse aqui em relação a Imitação da vida poder-se-ia dizer de tantos e tantos outros dramalhões que insistem em aparecer nas telas, como: O anjo branco, Os filhos de ninguém; toda a série de filmes com Libertad Lamarque ou Sarita Montiel e outros monstros.

Caetano Veloso.

O ARCHOTE, NO 9, SANTO AMARO, BAHIA, 28 DE MAIO DE 1961.

Postagens mais visitadas deste blog

O Leãozinho (Caetano Veloso)

Os Argonautas (Caetano Veloso)

Milagres do Povo (Caetano Veloso)