Fora de toda lógica (1986)

O telegrama de Roberto Carlos a Sarney, congratulando-se com este pelo veto a Je vous salue, Marie, envergonha nossa classe. Gustavo Dahl ao menos disse que há muito tempo deixou de ser cineasta, antes de pedir respeito por um governo que não parece querer dar-se ao respeito; D. Arns prefere que esqueçamos um assunto que "já se tornou chato". Não! Eu não esqueço. Fernanda Montenegro não esquece. Sabemos que o veto é uma violência cultural e uma vergonha política. Eu jamais barganharia com Celso Furtado ainda que fosse a total moralização dos direitos autorais pela estupidez de minimizar o escândalo sob o pretexto de que Godard é um falso gênio. Não aceito o veto e acho que nenhum artista digno de nome pode aceitá-lo.

O artigo de Paulo Francis, “Ave Sarney", fala por mim e exatamente nos termos que eu gostaria de me expressar. Exceto no que diz respeito ao filme em si. É engraçado. Todos os que se manifestaram contra o veto apressaram-se em se manifestar também contra o filme. A revista Veja, em editorial, xingou a mãe de Godard. Roberto Romano diz que o filme é prosaico, e Paulo Francis que é "entrópico". São todos tão insuspeitos como Austregésilo de Athayde. Eu não. Se quando os bispos, o presidente da República e os organizadores do FestRio tentaram fazer a gente de besta, eu gritei e pedi explicações; se quando o ex-ministro da Justiça ia estudar uma decisão, enviei um telegrama pedindo a liberação; e se agora insisto no assunto e convido meus colegas (ao menos os de música popular, para compensar a burrice de Roberto, já que os cineastas estão tão tímidos) a exigir do presidente uma revisão da sua posição, não é apenas por um senso cívico (temos de ter um mínimo, banana!), mas sobretudo porque me sinto esteticamente comprometido com o filme. Para mim é outro escândalo que ele não tenha encontrado nenhum apoio crítico, fora o parecer do chefe da Censura, que o proibiu a contragosto, o singelo "é lindo" de Fernando Lyra, que não pediu demissão, e a resenha escrita por uma moça de boa vontade na revista Isto É, que considerou o filme “uma missa". O artigo do professor José Arthur Giannotti é uma exceção. Mas, tal e como Romano e, como este, trabalhando com conceitos com os quais não estou muito familiarizado, về o filme perpassado por uma "ladainha racionalista". Sem dúvida, suas observações sobre o drama da virgem representando a diferença entre sexo e carne através da inversão da relação corpo-alma dizem algo sobre a beleza do filme.

Mas a "acusação" de racionalismo não pode ser aceita sem discussão. Eu acompanharia mais facilmente a argumentação de Paulo Francis, apenas para chegar a conclusão oposta: é certo que em Je vous salue, Marie, toda vez que se esboça um sentido, este é anulado e as coisas se espatifam bem à nossa frente. Mas não é o mesmo que acontece quando a gente lê os Títeres da Cachiporra, de Lorca, na verdade todo Lorca? O poema se desvencilha dos seus sensos grosseiros que ameaçam a cada passo a instauração de sua luz que deve ser nova e única e irredutível. O que é que acontece em cummings? E mesmo em Pound? Ou será que só compreendemos o canto retórico contra a Usura? Pode-se dizer que, se a Roberto Romano Je vous salue, Marie parece desprovido de poesia, a Paulo Francis ele parece supersaturado dela. Para um, não pode haver poesia na paisagem urbana contemporânea (tudo o que não for tafetá chamalotado púrpura é prosaico), para o outro, certas liberdades formalmente reconhecidas como direito do poema invadiram a vida cotidiana e assim se perderam todos os parâmetros: basta molhar de tinta o rabo de um burro e virar-lhe o traseiro para a tela. Aquela velha história. Suponho que Romano fez certa confusão entre prosaísmo e racionalismo, e Paulo Francis entre lirismo e baderna. Já Giannotti (o que melhor viu o filme) parece se ressentir apenas dos restos de cacoetes racionalistas (Freud?) que sem dúvida fazem parte do "sotaque" de Godard. Este, nas suas entrevistas, mesmo deixando a tática poética de desfazer sentidos invadir a conversação, disse coisas muito mais simples e mais claras, que servem melhor a quem queira, como eu, esboçar uma defesa do filme.

Godard encontrou, há muito tempo, meios de montar uma imagem em movimento com uma imagem estática, sem que se perca a leveza do corte e a fluidez da seqüência. Em Je vous salue, Marie, a alternância, sem tropeços, das imagens intensamente movimentadas de uma moça que joga basquete com a imagem de uma lua imóvel é, para além da maestria formal, uma dança do intelecto entre os signos visuais: a bola, o corpo, a lua, a barriga, a alma, o feminino, o branco, a terra-céu. Godard é um artista moderno, crítico, complexo, que foge do fantasma da autoconsciência. Muitas vezes essa fuga vale a pena: Je vous salue, Marie é um momento privilegiado desse drama. Não faz sentido falar em cartão-postal diante de uma cena de campo, de jardim ou de sol, que justamente fala de todos os cartões-postais, libertando deles toda a paisagem e libertando-os da abominação de terem matado toda beleza, redescobrindo assim também neles a sua beleza própria. Não faz sentido falar em revista Playboy, quando se despe o nu da farda do nu. Não faz nenhum sentido falar em intenções sensacionalistas se o artista que resgatou Hollywood e sua indústria do sensacional expõe com delicadeza sua atração pelo assombro que é pensar a maternidade virginal não como mito apaziguador da angústia infantil perante a natureza carnal e sexual da concepção, mas como a dádiva incomensurável daquela que aceitou negar sua sexualidade para encarnar esse mito necessário à vida. E que, por isso, é uma metáfora da aceitação da vida mesma pela matéria. E da matéria pelo espírito: a alma tem um corpo. "O filme é a prova do que é possível, pois acontece sob nossos olhos. O medo. O sangue. A alegria." Faz sentido dizer que a concepção virginal de Maria não poderia se dar sem José: as deslumbrantes tomadas da mão que tenta se aproximar da barriga ("Eu te amo!") que não se deixa tocar são o canto doloroso (apesar do intelectualismo francês e da finura impressionista do estilo, o filme faz pensar não apenas em Lorca, mas nos cantes flamencos) a falar de um corpo que possui uma alma que aprende a aceitar a aceitação não aprendida, mas nem por isso menos dolorosa, do inexplicável por uma alma que possui um corpo. Seria outra coisa o milagre da concepção numa virgem solitária. Pelo carinho com que olha a mulher, pelo contraponto sutil nas oposições entre o sagrado e o profano, pela escolha do viés religioso para encontrar o poético no bruto cotidiano. Je vous salue, Marie se aproxima, mais do que qualquer outro filme de Godard, de Vivre sa vie (a alma ficava depois do lado de dentro da galinha; a prostituta na tela via Santa Joana na tela e chorava). Só que Vivre sa vie era elegíaco e Je vous salue, Marie é o hino à alegria. Os animais do presépio contra o céu. O presépio como os nus da Playboy e os cartões-postais. Uma voz de mulher sussurra: "Obrigada, Maria, por todas as mulheres".

Dizem que o filme dá sono. A mim me deixou acordado em Paris até o amanhecer, chorando e falando. Lembro que disse mil coisas, mas as palavras que li, na Folha, do próprio Godard, se o Espírito tivesse me dado, naquela noite, concebê-las, eu me teria calado em seguida, tranqüilo, sabendo-me de posse do que tinha experimentado: "Maria é uma personagem muito próxima do artista, que aceita sem compreender, que recebe antes de dar, que acolhe a palavra fora de toda lógica, e que lamenta não poder aceitar tudo e todos com mais felicidade".

Uma cantora de voz vazia chamada precisamente Madonna repete o refrão "like a virgin". Aqui na Bahia o machismo grita "Pega ela aí, pega ela aí. Pra quê? Pra passar batom". O que me deixa indignado é que o filme que o atraso político impede os brasileiros de verem (inclusive com agentes da Polícia Federal apreendendo vídeos) seja exatamente um dos mais belos e instigantes que eu já vi. Roberto Carlos teve problemas com os bispos no início da carreira por causa da inesquecível canção "Quero que vá tudo pro Inferno". Parece que recebeu pressões para escrever "Eu te darei o céu". Tais pressões o impressionaram demais. Todo mundo esqueceu? Vamos manter uma atitude de repúdio ao veto e de desprezo aos hipócritas e pusilânimes que o apóiam.

Caetano Veloso.

FOLHA DE S.PAULO, 2 DE MARÇO DE 1986.

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