José Miguel Wisnik (1993)

Ouvir o disco do Zé Miguel entre uma sessão e outra de gravação do meu disco com Gil foi uma experiência rica em sugestões de renascença de certas esperanças, como se uma avalanche de boas notícias ou de bons presságios se tivesse desencadeado. Em primeiro lugar, São Paulo, que está como que ausente do nosso projeto. Não que isso nos parecesse uma falha: nosso disco é uma celebração dos 25 (agora 26) anos do tropicalismo na forma de uma colaboração entre mim e Gil na nossa situação atual. Não há um instrumentista, um sotaque, um estúdio paulistano nas faixas que estamos aprontando porque não se trata de reeditar o ambiente em que agíamos em 67 - se fosse assim, o disco teria de ser todo em São Paulo –, mas de trabalhar com músicos com quem mais ou menos temos convivido, em estúdios que vimos usando nas últimas décadas, na cidade onde moramos. Claro que ecos de São Paulo se ouvirão, e referências explícitas a estilos ali nascidos, e escolhas determinadas por lembranças de lá. Mas a mesma voz de São Paulo nós já tínhamos descartado. Estávamos quase falando sobre a consciência disso quando o espírito de Sampa entrou pelo meu apartamento encapsulado no cassete das gravações de Zé Miguel. Gil, Pedro Sá (um excelente guitarrista de vinte anos), Arto Lindsay (que estava de visita) e eu ficamos logo fascinados pelo estranho jardim de onde Zé Miguel arranca as teclas das suas flores harmoniosamente assimétricas, delicadamente tensionadas. Fomos ouvindo uma a uma as canções singulares e confirmando o nível alto a que sua condição de canções tinha sido lançada. Mas o som, fisicamente, nos causava impressão entusiasmadora. Havia clareza e certeza, limpidez e nitidez de propósitos e decisões. E, sobretudo, uma textura (conseguida macroestruturalmente) do som de São Paulo, um timbrar a lira paulistana, a partir de suas vozes diversas, num tom de generosidade que nada tem de sentimental ou demagógico. Ná Ozetti está cantando mais bonito do que nos shows em que os vi juntos - e fazendo com as belas melodias de Zé Miguel o que desejei que algumas grandes baladistas brasileiras – Bethânia, Zizi, Gal, Marisa - fizessem, mas que já não sei se elas seriam capazes. Quando a voz de Arrigo surge, sente-se imediatamente a humilhante força da categoria de sua performance: é o ressurgimento, dentro de nós, da profunda impressão que a essência de sua arte provocou quando vimos Clara Crocodilo ao vivo pela primeira vez – e que ainda não tinha chegado ao disco com tanta presença, o LP Clara Crocodilo tendo o mesmo nível de atuação oculto por um som emplastado. A grandeza do disco de Zé Miguel, aqui, é de força histórica, no sentido de melhorar o som de discos passados. Quem poderia desejar algo mais auspicioso para a canção brasileira do que a reconfirmação do gênio de Arrigo? E Zé Celso! Aquela tradução bonita de um poema que a gente não sabia que existia – não sabe se existe! E do rabo! Mas o que me toca – nesse particular - é a faixa com Luiz Tatit. No meio de toda essa angústia ante o perigo de a música popular (provando de vez que o Brasil não presta) sugar todos os talentos acadêmicos, eruditos, científicos, literários e políticos, é com intensa alegria que considero o tom de humor com que os dois mestres cantores abordam o assunto: não há o menor traço de irresponsabilidade. E eu, que que- ria ser professor, encontro-os num trecho do caminho em que se pode parar para conversar com proveito e sem que isso represente perda de tempo.

Um lindíssimo disco. A voz do Zé Miguel é muito parecida com as suas composições. Delicada e quebradiça, mantém uma firmeza que se deve ao que é nobre nele - não o esforço. Sua inventividade rítmica deve ter espantado as baladistas (teria me espantado a mim, se me fosse proposta a tarefa - mas eu a cumpriria, também por nobreza nascida da identificação): não são ritmos "intuitivos", “naturais" - ele é paulista, nada mais natural para ele do que uma elaboração mental. Mas é tudo espontâneo. Ele toca piano nesse disco como um grande artista - como alguém que poderia ser chamado de grande artista só por esse toque. O cello, o trombone, os teclados, tudo no lugar certo.

Perdoem-me o tom auto-referente, mas tenho de dizer que esse disco do Zé Miguel é, para mim, o complemento de tudo o que eu quero festejar com Gil. A ponte Bahia-São Faulo, entre tantas coisas que desmoronam no Brasil, está de pé. Isso é muitíssima coisa.

Caetano Veloso.

Release do disco homônimo de José Miguel Wisnik, 1993.

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