O que dizem essas casas? (1988)

O que dizem essas casas? Sob o céu a todo céu do Nordeste brasileiro, em meio à dura vida humana, o que insinua sua lírica geometria?

De frente para a câmera de Anna Mariani, elas parecem esboçar um sorriso silencioso. A câmera não pretende interpretar os seus signos, mas entrar numa espécie de estado amoroso com a delicadeza de sua poesia. As fotografias são como monalisas pintadas por Volpi.

Para mim são coisas íntimas. Casas que conheço por dentro. Em Santo Amaro, onde nasci, no Recôncavo Baiano, as pessoas pintam suas casas a cada fevereiro para as festas da padroeira: é como comprar um vestido novo. A cidade fica endomingada, como se fosse um cenário de teatro ingênuo, com todas as casas recém-pintadas. É simples: é a alegria de viver, a vontade de ser mais bonito. Aos olhos do próximo, aos olhos de Deus.

É complicado: vendo estas casas reduzidas à sua essência formal em retratos frontais, sobretudo aquelas que Anna foi encontrar longe da minha microrregião, no Sertão, onde elas exibem mais inspiração e rigor, eu me pergunto qual o caráter do ensinamento que elas trazem. O impacto estético que elas produzem em nós sem dúvida confirma e ultrapassa o sentido de superação da miséria. Os homens que desenvolveram esse estilo visual numa região tão pobre do Brasil nos fazem ver que há muitos níveis insondados, muitos estágios misteriosos nas relações entre as massas e o que se convencionou chamar de modernidade.

Caetano Veloso.

Catálogo da exposição Des maisons comme des tableaux. Paris, Centre George Pompidou, setembro de 1988. O texto foi reproduzido no livro Façades – Maisons populaires du Nordeste du Brésil, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988 (versão para francês do livro Pinturas e platibandas, realizada a pedido do C.G.P.).

Fonte: Livro O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 2005.

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