Parece um filme menor (2004)

O cinema brasileiro ainda não tinha se encontrado com a música popular do Brasil. Claro que todos sabemos de Alô, alô, Carnaval!, das chanchadas da Atlântida e de Quando o Carnaval chegar. Não esquecemos tampouco a colaboração de Sérgio Ricardo com Glauber Rocha em Deus e o Diabo na terra do sol ou a utilização da vitalidade de Jorge Ben por Cacá Diegues em Xica da Silva. Há o Mário Reis, o Lamartine Babo, o Sinhô e o Noel de Júlio Bressane - e gravações de marchinhas e sambas dos anos 30 em todos os filmes deste. Há Chico e Menescal em Bye, bye, Brasil e Ruy Guerra na Ópera do malandro. E o Diegues destro que hoje celebramos com sucessos em série começou com Veja esta canção. Mas não é preciso esquecer que "A voz do morro" identifica Rio, 40 graus para constatar que Cazuza marca o primeiro encontro verdadeiro do nosso cinema com a nossa música popular. No sentido de o cinema estar aqui à altura das virtudes e vantagens da canção, de suas conquistas tanto nas áreas baixas quanto nas altas da produção cultural.

Muitos filmes brasileiros novos têm se aproximado dessa comunicabilidade a um tempo extensiva e profunda que sempre foi natural na canção. Mas Cazuza é o primeiro a ser assim e ter a música como tema. Não se trata mais de um cinema que pode mostrar-se superior à música em aspectos que a ela não interessam, sendo falho em quase tudo o que ela domina. Não. Aqui é um grande filme sobre música - e que se dá pela música – em que a nossa conhecida competência em lidar com ela se acompanha de uma competência cinematográfica de mesma natureza. É o primeiro grande filme musical brasileiro.

Era de se temer que um filme biográfico (quase não há biografias aceitáveis no cinema mundial) - e sobre um artista cuja presença real ainda está fresca em nossa lembrança – resultasse em desastre. Mas Cazuza é um dos mais arrebatadores retratos de personagem romântico que se pode ver projetados numa tela. Sandra Werneck e Walter Carva- lho, os diretores, e Daniel Filho, o produtor (o filme tem um saudável gosto de filme-de-produtor), reuniram elementos que se potencializam uns aos outros de forma quase milagrosa: os atores (sobretudo Marieta Severo e o sublime Daniel de Oliveira), a direção de arte, o tom dos diálogos e principalmente o tratamento dos números musicais (as remixagens de números do Barão Vermelho, feitas por Guto Graça Mello, em que as vozes de Daniel e do próprio Cazuza se alternam e se fundem sem que a gente perceba as trocas), tudo concorre para criar uma empatia entre a obra e as platéias que enobrece a face popular do cinema e populariza alguma coisa misteriosa da experiência poética autêntica.

Alguns críticos, embora não pudessem esconder o arrebatamento, deram mostras de desconforto com o tom literário ou o caráter intencional das falas do personagem central. Confesso que em mim o estilo de diálogo encontrado para o filme não provocou mal-estar. Ao contrário. As falas sempre como que ditas por alguém inspirado intensificam o espírito romântico do filme e do seu personagem. Elas são fundamentais para que Cazuza: o tempo não pára produza o abalo emocional que atinge mesmo aqueles que se crêem envergonhados ao ouvi-las.

Muitas vezes lamenta-se que não haja roteiristas hábeis no Brasil. Mas aqui é uma sorte que não tenha chegado alguém com idéias para guinadas na história ou construção de conflitos. O filme ganha muito com ater-se a acompanhar o jovem poeta em episódios que o definam e em performances que o revelem. Com isso o roteirista Fernando Bonassi contribuiu para que Cazuza parecesse um filme menor, em que cremos que a beleza vem do assunto tratado, e não do próprio filme. Quando, na verdade, estamos diante de um filme que é grandioso justamente porque nos convence de que seu tema o ultrapassa. É como se não fossem a fotografia e a montagem que criassem o encanto, mas a grandeza dos fatos retratados que imprimisse sabedoria aos cortes e textura às imagens. O que é perfeitamente adequado a uma obra romântica e sobre o romantismo. Ver a refeitura da apresentação do Barão no Rock in Rio ou ouvir a "Vida louca", de Lobão, na voz de Cazuza quando este é carregado por Bené para dentro das ondas do mar; sentir-se entre Daniel e Marieta quando eles reproduzem um diálogo de Cazuza com sua mãe dentro de um túnel urbano aonde ela fora levar a gasolina para abastecer o carro do filho desleixado – esse é o tipo de experiência de que se precisa para chegar a estados de intensa comoção.

A explosão do rock brasileiro nos anos 80 foi um acontecimento de grande importância. Que o cinema tenha vindo (ou ido) até onde a música está, justamente quando decidiu contar a história do mais romântico dos representantes desse fenômeno romântico, é um sinal de saúde: o Brasil já sabe e pode dar consistência à construção de seus mitos.

Caetano Veloso.

JORNAL DO BRASIL, CADERNO B, 15 DE JUNHO DE 2004.

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