Saindo do centro (2005)

Saindo do centro da barriga de Jorge Amado, dessa espécie de colméia em que consiste o ventre do escritor Jorge Amado, saindo daí, os veados filósofos poetas, partindo desse núcleo que é o abdome do mundialmente famoso escritor baiano Jorge Amado, um grande enxame de filósofos poetas veados, abelhas-poetas, os homossexuais que montam pênis alados na última cena da epopéia fulgurante escrita pelo obscuro escritor paulista José Agrippino de Paula, o enorme enxame de veados-abelhas, revoada marcial, atacará a casa senhorial que se encontra instalada na cabeça do escritor brasileiro Graciliano Ramos. A abelha-rainha poeta, um adolescente que quando velho será poeta, enviando dali o cantor de música popular brasileira Jorge Ben com sua espada azul de guerreiro negro, teso como um pênis sem asas, com sua lança negra de ferro negro e seu arco teso como um coração de homem negro, e suas muitas setas e flechas e sua potente alegria, enviado esse herói, zangão-filósofo, o cantor com sua armadura e sua guitarra elétrica abrirá a janela da casa-grande, abriu a janela, encontra o escritor Graciliano Ramos com a cabeça pousada entre as mãos sobre a longa mesa da sala da casa-grande que está instalada na sua cabeça, deixando assim entrar todos os insetos por aquela janela, filósofos e poetas, veados, início do ataque ao escritor Graciliano Ramos e à cabeça da casa patriarcal.

O prestigioso escritor alagoano Graciliano Ramos estaria seco como a madeira da sua mesa que é um retângulo castanho dentro do retângulo branco da sala da casa-grande instalada na sua própria cabeça e não perderá a dignidade e não levantará os olhos para o facho de luz que atravessou a janela retangular aberta a socos pelo guitarrista negro Jorge Ben, o enviado da poeta-rainha residente no âmago do escritor sem cabeça Jorge Amado, Graciliano Ramos não atenta para o zumbido produzido pelo batalhão de filósofos e em particular pelo devaneio de um adolescente que será poeta quando velho, o qual consiste em repetir mentalmente o movimento lento e aplicado da atriz italiana Giulietta Masina introduzindo a estatueta do Oscar na sua pequenina vagina, e isso é pior do que música aos ouvidos dignificados do escritor Graciliano Ramos mas ainda assim o escritor brasileiro Graciliano Ramos não demonstraria atentar para o turbilhão que se seguira à entrada alegre e enérgica do herói Jorge Ben com sua guitarra elétrica de procedência norte-americana.

A atriz italiana Giulietta Masina tornava a introduzir lentamente a luzidia estatueta do Oscar na sua pequenina vagina e seus olhos de hipertireóidea boiavam na água que quase transbordava das pálpebras inferiores onde os cílios pintados demais para compor a máscara da prostituta que ela ia interpretar no filme Le notti di Cabiria estavam servindo de anteparos negros que permitiam que a tensão superficial das moléculas de água da lágrima se mantivesse e assim se poupasse a pintura branca da sua face de santa.

O músico carioca Jorge Ben não desferiu um golpe mortal no escritor brasileiro Graciliano Ramos, esfacelando-lhe a cabeça com sua pesada guitarra de madeira maciça de procedência norte-americana, nem tocou música, apenas obedecia ao impulso originado na geléia real no centro do favo que é o umbigo do acéfalo escritor Jorge Amado e, assim sendo, desfez a simetria entre o retângulo da mesa e o retângulo da sala da casa-grande instalada na cabeça do escritor alagoano Graciliano Ramos, de modo que, da cabeça desse escritor, a qual até então estivera apoiada nas mãos sobre a mesa da sala da casa que se encontra instalada na sua cabeça, não restou senão a secura sem mãos e sem cabeça e por muitos anos não se falou nada sobre o escritor bra- sileiro Graciliano Ramos.

O escritor paulista José Agrippino de Paula caminhava sem parar, subindo e descendo a Rua Purpurina, e eu discutia com ele sobre a literatura e a língua e sobre como a falecida atriz norte-americana Marilyn Monroe emocionava mais a gente por parecer-se com a prostituta espiritualizada e pura e ingênua e cômica interpretada pela atriz italiana Giulietta Masina do que por possuir um corpo cujas formas nos estimulassem sexualmente, enquanto a atriz italiana Giulietta Masina, em cujo corpo ninguém pensava como estimulante sexual, nos surpreende com seus peitos duros e belos, suas pernas pequenas mas bem torneadas, seus braços roliços e sua cintura estreita, tudo em proporções muitíssimo equilibradas, mas eu não estava passeando ao lado do escritor José Agrippino de Paula acima e abaixo daquela rua, ele tinha decidido ser considerado louco e para tanto tinha ficado louco de fato, e eu estava apenas discutindo essas coisas com ele, sem de modo algum estar andando com ele naquela rua da cidade de São Paulo, mas ele discordava da minha argumentação, fazendo-me ver que a ele não lhe parecia boa a orientação da minha sensibilidade, nem tampouco o repertório de palavras e coisas eleito pelo meu interesse, e eu via na sua cara a ferocidade que meu gosto pelo pequeno paradoxo lhe provocara, enquanto um sorriso doce começava a despontar por trás da procela cor de chumbo, um sorriso benevolente e amoroso que me perdoava a ingenuidade a respeito de literatura quando eu falava de língua.

No filme Le notti di Cabiria a carne de Giulietta Masina se insinua sólida e boa sob as roupas grotescas e sobre a idéia de colocar uma atriz considerada feia e espiritual no papel de uma mulher que vende o corpo. A carreira de Marilyn Monroe constituiu na venda do corpo de uma mulher considerada fisicamente bela mas cuja pureza espiritual se deixou entrever, juntamente com a flacidez da carne, por trás da maquiagem e dos vestidos exuberantemente vistosos.

Eu tentava caminhar ao lado de Zé Agrippino pelas ruas da cidade de São Paulo e, ali, tentava fazê-lo levar em consideração as minhas observações. Alguma coisa tinha se passado com ele que eu não podia compreender, alguma coisa que fizera derreter lentamente o chumbo de sua alma (sim, porque, sem dúvida, desde sempre o núcleo de sua pessoa era formado do mais denso e escuro chumbo), espargindo-o até aos mais periféricos dos seus gestos. O que quer que fosse, parecia-me ao mesmo tempo mais fácil expor-lhe as minhas idéias e mais difícil fazer-lhe interessar-se por elas. Há alguns anos eu teria emudecido na sua presença, mas teria obtido dele respostas fortes e úteis a qualquer das minhas manifestações. Agora eu falava com coragem e sem esperança – e ele às vezes reagia por polidez, nessa atitude que ele copiava dos loucos à perfeição e que, por sua vez, consiste em copiar canhestramente os modos dos homens sensatos. Eu lhe explicava minha oposição à idéia de amor que está por trás dos atos da menina por quem, no entanto, eu estava apaixonado. Era uma argumentação crivada de paradoxos esfumados onde, num impulso lógico que mais me fazia gritar do que propriamente formar frases claras, eu deplorava a situação das mulheres, as quais, sem acesso direto ao sexo e ao poder, criam para si mesmas paraísos de promessas e infernos de decepções e compõem com tudo isso um fantasma a que chamam "amor". “Love is their whole happiness", diz a letra de uma canção americana. Eu experimentara uma paixão na adolescência: era impossível ver ou mesmo pensar naquela menina sem ser acometido de um acesso de esmagadora felicidade, uma sensação certamente grande demais para o meu corpo, uma vez que, neste, isso sempre se manifestava sob a forma de sufocante taquicardia acompanhada de cólicas intestinais e ereção quase dolorosa do órgão genital. "Um homem não ama!", eu gritava como se tivesse chegado à conclusão de um raciocínio. "O cão que pertence ao meu filho de dez anos fica transido de emoções quando o vê depois de uma ausência um pouco mais prolongada: seus músculos parecem convulsos, os olhos lacrimejam enquanto a cauda bate eletrizada; gemidos como que ainda mais involuntários do que tudo o que um cão pode fazer escapam-lhe do focinho cerrado, e, com pequenos jatos intermitentes de urina, ele tem uma ereção." Eu caminhava, fazendo soar espalhafatosamente minha voz, ao lado de Zé Agrippino, que continuava calado e parecia esconder uma gravidade falsa por trás de um sorriso sincero e terno. "Eu me vejo naquele cachorro. Vejo nele minha adolescência aterrorizada e tenho saudades dela. Mas é maior o meu escárnio. Veja essa menina agora: nem sequer sabe o que é o sexo: nunca se masturbou, não entende o orgasmo, nem eu nem ela sabemos se ela vai chegar a gostar de sexo e, no entanto, me quer e quer-se presa a mim. E talvez não a mim, mas a um homem qualquer que venha arrebatá-la ao que lhe parece insípido para mergulhá-la no que ela imagina maravilhoso. Talvez a força física, a inteligência, a fama, a virtude, o dinheiro sejam mais capazes de desencadear ne- la o 'amor' do que o seria a certeza de satisfação sexual. E, no entanto, é o sexo que se apresenta como objetivo final e móvel primeiro dos compromissos amorosos." Zé Agrippino andava ao meu lado calado como se fosse o próprio amante da Lady Chaterley obrigado pelo destino a viver num mundo onde a cultura, a sensibilidade e a cadeira de rodas do Lord Chaterley tivessem dominado tudo. Contudo havia amizade entre nós e doçura no ritmo do nosso desencontro. "Meu fiIho ama seu cão, mas tem muitos outros interesses e amores, grande parte dos quais de maior peso para ele. O cão necessita comer e trepar numa cadela, divertir-se caçando insetos grandes e bolas pequenas, mas eu amo é o menino que é o seu dono. Quererá isso dizer que meu filho o ama menos do que é amado por ele? Um homem não ama. Um adulto maduro e viril não pode amar, não enquanto tal. Só as mulheres, os adolescentes e os cães amam de fato, e um homem quando se apaixona regride ao estágio deles." Ao mesmo tempo eu imaginava os papagaios que morrem de saudade se mudam de dono e olhava um tanto temeroso para a figura esverdeada do meu amigo Zé Agrippino, cujas pernas pareciam espalhar, a cada passada, velhas críticas ao meu ridículo e inteligente discurso, críticas que ele há muito tempo devia ter deixado de formular no pensamento, e isso de certa forma me fazia achá-lo semelhante a papagaio. E assim seguíamos, eu tentando articular racionalizações que ele comentava com as botinas e as unhas.

Zé Agrippino talvez venha a ser o personagem principal deste romance. Talvez isto venha a ser um romance de memórias imaginárias que, ao contrário do livro de Marcel Proust, não servirão para redimir o passado, e sim para destruir-lhe a vocação abjeta de fazer sentido, de modo que o presente se torne ardente e escrever seja um prazer que dificulta a vida, trazendo-lhe novas impossibilidades de conclusão formal e infundindo-lhe, assim, um forte desejo de continuar. Uma exigência de reafirmar-se a cada lance, dados luminosos numa guerra cega (uma cópula no escuro) entre a literatura e a doçura de viver. Há um homem que envelheceu precocemente por medo de morrer jovem; tinha o mito do Cristo e do poeta romântico e um arrebatado amor por si mesmo - aos 28 anos tomou ares de ancião porque não agüentava esperar a velhice que lhe asseguraria escapar ao sacrifício do seu belo corpo jovem. Um outro manteve a juventude até que o medo não fosse tão grande e já não sabia envelhecer nem era um homem com poder sobre as mulheres. Um terceiro foi assassinado por um desconhecido na força da idade, enquanto formulava teorias contra a imolação dos criadores vitais. Ainda um outro vive e aos 88 anos de idade planeja obras que são a destilação de uma finíssima ironia cujo alvo é a idéia da possibilidade de qualquer mudança naquilo que ele um dia chamou “o mundo". Sei muitas histórias de homens. Meu amigo Rogério (que criou o mito Zé Agrippino e me apresentou ao homem que porta esse nome) me disse um dia que, apesar do seu imenso talento literário, não escrevia um romance porque não se contentaria em ser o autor: tinha que ser a personagem. Eu também não posso admitir que haja um Deus e que não seja eu. E “se vier que venha armado". Etc. Zé Agrippino é sobretudo sua própria personagem e sua própria mensagem: ter escrito os livros que escreveu é apenas um dado na composição da personagem e na clarificação da mensagem. Eu escrevo porque penso demais. Sobretudo porque penso frases e períodos demais. E desse modo penso sobre coisas curiosas que tenho visto e vivido e situações curiosas em que por acaso tenho me encontrado. Um livro pode almejar ser um botão ou uma sonata, em suma, um objeto. No entanto a prosa (que em português coloquial – não por acaso - é sinônimo de conversa) me parece ser o lugar da subjetividade: posso construir um romance como se fosse um anel, um poema, objetivando-me assim como a criança cujas criações só ganham sentido ao olhar adulto; mas na própria formulação das sentenças está a dimensão da sobriedade, esse tipo de superioridade que dois homens lúcidos que observam os movimentos de uma grande bailarina ostentam em relação a ela. Se o comentário inteligente e rigoroso à própria obra está implícito em cada palavra que James Joyce escolhe para compor suas peças, em Thomas Mann esse mesmo senso crítico se explicita em vários planos de reflexão. Eu quero escrever de modo que o prefácio, o julgamento e até mesmo a propaganda e a detratação a mim possíveis no ato mesmo da escrita façam parte do corpo da obra. A orelha do livro é aqui mesmo dentro do livro, um livro que se ouve a si mesmo desde dentro, totalmente autoconsciente. Por exemplo: quero imaginar Rogério comentando, com aquela sua risada brônquica em que se sente o prazer dos alvéolos trepidando, uma frase que escrevi páginas atrás. Na minha ânsia romântica de escrever obedecendo a impulsos genuínos, como quem fala exibindo toda a sua capacidade de verdade no modo da emissão da voz, eu passei rápido por alguma coisa como "as mulheres não têm acesso direto ao sexo". Bem, não era isso que eu estava dizendo, mas a frase está lá e Rogério a destacaria do contexto enganador pelo tom demasiadamente expressivo, quase arrebatado, para questioná-la impiedosamente. “Não entendi nada", diz ele, carregando, por sua vez, num tom a um tempo cético e inocente que, ao menor esboço de resposta explicativa, torna-se sincero e sensato: “Como você tem a irresponsabilidade de dizer um absurdo desses? Eu já tive milhares de mulheres e a impressão mais forte que ficou de minhas experiências nesse campo é exatamente o contrário: elas é que entram em identificação total com a realidade profunda do sexo".

Caetano Veloso.

Livro: O Mundo Não É Chato. Caetano Veloso. Organizado por Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

Postagens mais visitadas deste blog

O Leãozinho (Caetano Veloso)

Os Argonautas (Caetano Veloso)

Milagres do Povo (Caetano Veloso)