Um filme de montagem (1962)

I. Barravento é um filme cheio de intenções. Como todos os filmes que têm surgido do movimento Cinema Novo, ele não é uma obra gratuita: é uma tentativa de cinema vinculado com a verdade e a cultura do Brasil. Um cinema que supere a nossa pré-história (chanchada) e redima os erros dos que tentaram iniciar uma arte brasileira do filme, mas que correram para o preciosismo alienado ou que não saíram da intenção de fazer cinema caboclo. (Vera Cruz; produtores independentes).

Até que ponto Barravento atinge esses objetivos? Até onde ele supera a obra preciosista cuja força de mensagem social fica apenas na intenção? Aqui começa a discussão sobre o filme.

Desde o início sentimos que Barravento é uma obra caracteristicamente Cinema Novo, em que as intenções surgem claras, mas os resultados não têm a sua força. Como em A grande feira, tenta-se lançar uma mensagem social sem rodeios, diretamente: ela está nas falas dos personagens quase em tom de discurso. Porém, se no filme de Roberto esses discursos surgem motivados por hipóteses e, desse modo, são prolongamentos da ação dramática, Glauber levou isso às consequências conseqüências: a relação dramática entre o discurso e a ação é anulada pela montagem e a mensagem surge acintosamente pura e seca. Enquanto em A grande feira Roberto Pires tenta camuflar a doutrinação de diálogos, criando assim uma discussão dialogação-mensagem que ele não pôde superar, Glauber lança a sua mensagem como mensagem, e se para isso foram utilizados personagens de ficção, estes são despersonificados pelo corte e o filme torna-se dialético.

Glauber percorreu muitos caminhos antes de realizar sua montagem dialética e ficou nítido que ela não foi bolada previamente, mas surgiu como exigência final de superação de uma incerteza e uma insegurança na direção. Insegurança e incerteza que resultariam na confusão eclética e na total incomunicabilidade de idéias.

II. A montagem, em Barravento, se exerce num plano acima do corte de imagem para imagem: a figura de Pitanga chamando os pescadores à consciência de classe, montada sobre o plano dos pescadores remendando a rede em silêncio, é um choque dialético neo-eisensteiniano, estabelecido entre a imagem e a fala. Embora exista uma motivação dramática entre os dois planos, ela é destruída pelo corte. Não é Firmino discutindo com os pescadores, mas o grito pela tomada de consciência em antítese com a inércia e a alienação. Também o close de Aruan jogado bruscamente em meio à cena da sentinela de Chico deixa de ser a particularização dramática de um personagem para ser o choque entre um ambiente místico e as palavras: “Peixe se pesca é com rede, com tarrafa; peixe se pesca é no mar, não é com reza, não". O drama é destruído: resta um poema documental um tanto neo-realista, contraponteado por violentas falas revolucionárias.

III. Firmino dos Santos personifica a consciência, a exigência da justiça para a raça e para a classe. A luta contra a alienação dos mitos, contra a derivação para Iemanjá de problemas que devem ser resolvidos aqui na terra entre os homens. Todo o filme é uma discussão entre os métodos de vida do povo praieiro e a revolta desse personagem que tem a força do rosto bonito de Pitanga, um ator impressionante. Firmino consegue lançar a semente da revolução no meio dos pescadores: Aruan quebra o encanto e nega Iemanjá. No final, Firmino tenta atrair aquela gente para o caminho de Aruan ("É ele que vocês devem seguir. O mestre é escravidão"); os pescadores, porém, seguem o mestre lentamente, a caminho do mar, no místico enterro de Chico. Mas Aruan continua andando para a frente.

Esta, a história que Glauber anula com o corte. Ou, pelo menos, que fica reduzida a um mero sustentáculo da dialética em que o filme redundou. Sustentáculo do documentário poético daquelas vidas paradas (tese); dos discursos revolucionários que, em meio à ação dramática, perdem a característica de diálogos, ao tempo em que os personagens se desindividualizam e se abstraem na idéia revolucionária (antítese).

VI. A discussão sobre Barravento reside na maior ou menor força comunicativa dessa dialética. Não acreditamos que este filme tenha, com o público, o contato que glorificou A grande feira: é uma obra clara enquanto pode ser como mensagem política, mas não faz concessão ao gosto do público que ainda vai ao cinema em busca da alienação, que encontra na TV e nos filmes americanos. Glauber sempre desprezou a concessão e agora sentimos como ela é perigosa: o que "ficou" de A grande feira foi a alienação para o drama burguês que existe no filme. Barravento rompe definitivamente com o convencional. Mas isso leva a um rompimento com o gosto do povo, para o qual, obviamente, sua mensagem dirigida. Acreditamos numa preocupação do público com relação ao cinema brasileiro, sabemos que, com relação ao cinema nacional, o povo se porta de modo diferente; que ele tem confiança e esperança no cinema baiano e que o nosso cinema não deve decepcioná-lo. É obrigação do cineasta conquistar definitivamente a confiança desse povo para o nosso cinema, porque para ele o realizamos. Barravento não é um filme pequeno-burguês: sua mensagem social ficará mais do que a de A grande feira, porque não há dispersão. Mas, sendo um filme chocante para o gosto do povo, é um perigo para as relações cinema-público na Bahia.

Contudo, acreditamos que agradará mais ao pequeno-burguês semiletrado do que ao povo mesmo.

Caetano Veloso.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, SALVADOR, C. 1962.

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