Vá ver o Ham-let do Teatro Oficina (1993)
O correspondente do jornal The New York Times no Brasil, Sr. James Brooke, num artigo em que queria demonstrar quão absurda é a atitude dos brasileiros em relação à homossexualidade, escreveu que "Gilberto Gil e Caetano Veloso alardeiam abertamente sua bissexualidade e usam vestidos em público". Como as afirmações são falsas e de facilíssima verificação (qualquer um no Brasil sabe que eu nunca usei vestidos e nunca declarei que sou bissexual) - e como eu tinha consciência de que o mesmo jornalista não se sentiria à vontade para fazer, em nenhuma circunstância, afirmações semelhantes e de falsidade igualmente verificável caso se tratasse de artistas americanos - considerei que ele tinha sido mais do que meramente irresponsável e decidi que isso não deveria ficar sem reparo.
Vários dos meus amigos americanos que consultei me desaconselharam uma resposta pública - nem pensar em legal! -, sobretudo dado o caráter delicado, melindroso mesmo, do tema. Mas é exatamente pela importância do tema ali abordado - sua importância objetiva para todos e sua especial importância para mim - que o caso não pode ser descartado como de somenos.
Claro que o que conta não é se eu considero moralmente condenável homens usarem vestidos ou terem relações sexuais com pessoas de ambos os sexos, e sim se os dois compositores mencionados na reportagem de fato tomam em face disso as atitudes descritas ali. Mas acontece que sou um artista que iniciou seus trabalhos nos anos 60. Minha chegada à idade adulta se deu em meio à expansão das idéias libertárias e à difusão em grande escala de ambições experimentais em todas as áreas da atividade humana, o que chegou a ser apelidado de "modernismo nas ruas".
Queríamos acabar com a hipocrisia, ampliar o campo de percepção, reencontrar a dimensão espiritual em nossa época de grandes massas, salvar o mundo. Queríamos arte de vanguarda na indústria do entretenimento e hábitos alimentares ao mesmo tempo mais artificialmente criados e mais racionalmente naturais. Queríamos radicalizar as conquistas democráticas, romper as barreiras convencionais entre os sexos, as classes sociais e os graus de cultura e também entre as diferentes culturas e entre as faixas etárias, para atingir um individualismo pluralista nuançado dentro do mais generoso espírito comunitário.
O neo-rock-n'-roll inglês e o maio francês, o tropicalismo brasileiro, o popismo nova-iorquino e o hippismo californiano – todos participaram desse clima de idéias. Esse programa utópico traria problemas, perderia a medida do possível e encontraria reações violentas e/ou obstinadas que fatalmente levariam a uma retração. Eu, pessoalmente, com toda a luta para manter a lucidez e o poder de julgamento sobre tais ambições e os métodos intuídos para tentar levá-las a cabo, nunca me senti inclinado a abrir mão do essencial desse ideário.
A possibilidade da experiência sexual diversificada - inclusive quanto ao sexo do parceiro -, o reconhecimento de sua legitimidade para mim e para os outros, sempre estiveram na base da organização da minha vida pessoal. E, o que quer que hoje se diga de mau sobre as indefinições de gênero que vieram no bojo das propostas de transformação surgidas na segunda metade dos anos 60, toda a solidez da respeitabilidade que construí em minhas relações com meus pais, meus filhos e minhas mulheres sempre inclui claramente esse complicador.
Tenho 51 anos, não vou mudar quanto a isso. Portanto, não tenho o menor desejo de me render seja à caretice (a palavra tem ainda hoje exatamente o mesmo sentido) convencional, seja à neocaretice que cresceu nos movimentos segmentários que ficaram como formas organizadas de manutenção do ideário na fase de retração - e que são evidência dessa retração. Ou seja: não bato cabeça nem para o neoconservador nem para o politicamente correto. Quem quiser captar o ambiente mental em que se dá minha procura por liberdade, verdade e beleza, vá ver o Ham-let do Teatro Oficina.
Quando no programa do Jô Soares perdi o controle e vociferei contra aquele jornalista americano, eu estava esperneando contra a prisão em que o que ele tinha feito me colocava. Eu cria firmemente que ele o fizera de propósito para me deixar sem saída. Talvez isso fosse pura paranóia, mas o fato é que não é fácil acreditar que um cara que mora no Brasil há anos possa julgar que eu verdadeiramente freqüento lugares públicos em travesti e que alardeio que sou bissexual.
Meu filho me disse que lhe pareceu óbvio que o jornalista quisesse nos elogiar - a mim e ao Gil –, dizendo com isso que nós éramos "avançados" e "liberados". Confesso que também pensei assim quando li pela primeira vez aquela matéria. Mas, em primeiro lugar, logo me desagradou o fato de essa descrição errônea do meu comportamento público estar destinada a criar um contraste gritante com o tipo de agressividade contra homossexuais que ali se diz ser a regra do Brasil. Lembrei-me logo de outro artigo do Sr. Brooke - escrito antes do impeachment de Collor - em que ele parecia sugerir que os brasileiros, em grande parte analfabetos e aprendendo quase tudo pela televisão, estavam tendo contato com a idéia de honestidade através do que viam na TV sobre os países do Primeiro Mundo, e que essas idéias "novas" terminavam por pôr em risco a nossa democracia, que seguramente não agüentaria um processo de impeachment.
Lembrei-me também que bradei contra essa argumentação em todas as entrevistas que dei a respeito em Nova Iorque, onde me encontrava quando ele foi publicado. Na minha (saudável?) paranóia, supus que ecos desse brado tivessem chegado até o Sr. Brooke e que a irrespondível frasezinha sobre mim (e Gil) era o troco – além de ser uma nova maneira de aumentar a incompreensão a respeito do Brasil nas páginas do seu jornal.
Claro que eu não quero de forma alguma desestimular o olho crítico do estrangeiro sobre nós - ele nos é necessário e, no caso específico do rapaz brasileiro a quem os Estados Unidos concederam asilo político sob a alegação de que sofria perseguição aqui por ser homossexual (esse era o pretexto da matéria do Sr. Brooke), acho mais do que justo que um correspondente americano formule exigentes indagações sobre o modo como o assunto é tratado pelos brasileiros.
Mas por que o Sr. Brooke precisou, para isso, criar uma caricatura mentirosa sobre o meu comportamento público? Como eu considero, na minha saudável paranóia, essas descrições do Brasil como um país incoerente e insolúvel parte de uma manobra que deve servir a pesados interesses econômicos que, com visão de considerável alcance, sentem que podemos ser uma ameaça, vi-me numa espécie de armadiIha perfeita. Ou quase: eu era o seu único defeito. Eu, ou seja, minha mera liberdade individualíssima que resolveu aparecer de repente durante o programa do Jô.
Pode ser que o Sr. Brooke esteja totalmente inocente dos ardis (nos dois planos) que minha paranóia lhe atribuiu. Nesse caso, peço desculpas. Mas sei que ele terá então sido um inocente útil a algo de que sou inimigo e contra o que eu tinha dever interno de lutar. O tema da homossexualidade era ideal para reforçar a idéia de um Brasil absurdo e para me deixar sem voz. Não caí.
Dada a natureza dos meus desejos e à autorização que lhes concedem minhas convicções morais, creio que não me seria impossível levar uma vida predominantemente homossexual bem-sucedida, assim como, pelas mesmas razões e ainda pelo modo como o acaso me tem tratado, levo uma vida predominantemente heterossexual bem-sucedida. Mas nunca tratei disso publicamente. Nem o farei aqui além do que está dito. Detesto as duas formas de pressão diametralmente opostas que se exercem sobre os indivíduos para que eles tornem públicas suas ações mais íntimas: de um lado, a exigência, por parte de grupos ativistas, da adesão pública a um rótulo que defina o tipo de suas atividades sexuais (na verdade, uma exortação a que os que têm experiência homossexual "confessem" - deixando implícito que os outros não precisam confessar, não têm o que confessar), e, de outro lado, o que é ainda pior, o estímulo ao exibicionismo tedioso e grosseiro (além de freqüentemente inverídico) que certa imprensa lança a pessoas mais ou menos famosas que resolveram então “contar tudo".
De todo modo, eu nunca usaria o termo "bissexual": ele é demasiadas vezes usado seja por caretas para “denunciar" os que eles consideram homossexuais, seja por homossexuais que desejam amenizar sua tipificação ou mesmo esconder a verdade de sua sexualidade. Há, além disso, uma freqüente idealização da bissexualidade como sendo uma conquista sublime que deixa todas as polarizações (praticadas por parceiros de qualquer sexo) na condição de velharia ou primarismo - e eu não quero, com toda a ambigüidade que meus modos possam sugerir, subscrever uma confirmação dessa ilusão. Nem me acho no direito de tirar demasiadas vantagens da minguada boa fama que ser homossexual angariou, sem ter enfrentado os problemas concretos que essa condição apresenta - embora tenha, na verdade, tido de enfrentar alguns e esteja agora mesmo enfrentando este.
É absolutamente claro para mim que tampouco deva me deixar prender quer pela obrigação de provar que nada havia de verdade nas afirmações do Sr. Brooke, quer pela obrigação de provar que nada há de preconceito anti-homossexual em minha reação. Ou seja: posso, ainda se quiser, aparecer usando um vestido de mulher, e isso em nada modificará o fato de que o Sr. Brooke afirmou que eu o tinha feito quando isso nunca tinha acontecido; posso passar o resto da vida usando terno e isso não significará que só gritei porque o travestimento me enoja. O mesmo para minha vida sexual e meus modos de revelá-la ou ocultá-la.
É maravilhoso que Gil e eu tenhamos vindo a São Paulo para celebrar as bodas do tropicalismo na mesma semana em que se reabria o Teatro Oficina com uma viva, clara e - com todo o leque de liberdades tomadas - fidelíssima versão do maior texto já escrito para o teatro em todos os tempos. Com efeito, o Ham-let do Zé Celso é possivelmente o mais belo espetáculo que ele já dirigiu. Ele introduziu muito mais do que um hífen entre a primeira e a última sílaba do nome do protagonista: há bossa nova e rock-n'-roll, homoerotismo e CPC, Brecht e umbanda; mas nunca vi nenhuma montagem de onde essa peça ressaísse mais limpidamente potente para tratar de todos os temas metafísicos e políticos, estéticos e psicológicos que ela aborda com indescritível inteligência. Há muito tempo não vejo tantos atores juntos em interpretações tão apaixonadas e lúcidas.
As cinco horas que a peça dura parecem rápidos minutos, tão divertidos, intrigantes e emocionantes são os acontecimentos cênicos que se sucedem. Se eu pudesse, convenceria todos os brasileiros a assistirem a esse espetáculo. Por tudo isso, foi para mim um prazer de amor pensar que, no entusiasmo de minha fúria no programa do Jô, eu fiquei parecido com o Zé Celso quando foi lá. Lembrei de como é curioso que Zé tenha sido como que sutilmente gozado pelo tom do programa, enquanto o Gerald Thomas, quando foi a sua vez, pareceu ser o gozador. Porque, neste momento, sinto-me mais perto de Zé do que sempre – e nunca me senti mais longe de Gerald Thomas do que quando ele disse que eu demonstrava esperteza chamando a atenção para o fato de meu nome ter saído no New York Times.
Claro que gosto imensamente do programa do Jô. E do Jô ele mesmo. A primeira coisa que lhe disse ao final do programa, quando notei a alegria que lhe causara minha participação afinal tão escandalosa, foi: "Você merece, o seu programa merece". Mas não esperaria de um programa como o dele uma adesão ao tom delirante de Zé Celso, de Waly Salomão ou ao meu. É mesmo mais do que suficiente que ele possa abrigar tais explosões, entre tantas coisas diversas que ele tem de abrigar, sem confundir-se com elas, mesmo que para manter a segurança de que o tom cool e light de talk show americano vai continuar no dia seguinte seja necessário confirmar certa cumplicidade com o telespectador para quem ver pessoas possessas é motivo apenas de constrangimento.
O Gerald Thomas - que tanto admiro e respeito como encenador -, sem alardear entusiasmo, desmascarou o esquema do programa e pôs de fato as coisas ali em termos de teatro versus TV. Acho que precisamos dos três: Jô, Zé e Gerald. Mas, agora então com esse Ham-let, Zé é para mim, indubitavelmente, a mais alta manifestação da nossa teatralidade. Tudo isso aqui no fim deste artigo vem a propósito dos tipos e graus de teatralidade sobre que se deve pensar para entender tudo o mais que nele foi dito.
P.S.: depois de escrito este texto, vi, no mesmo Jô Soares onze e meia, o Sr. Warren Hoge, atual editor-adjunto do New York Times, dizer, um tanto maliciosamente, à imensa audiência do programa, que seu subalterno Sr. James Brooke só afirmara que eu tinha usado uma saia porque ele queria ilustrar sua tese de que no Brasil, como nos Estados Unidos, há uma grande tolerância da vida gay convivendo com uma grande agressividade contra ela. O próprio Jô escreveu que eu me indignara por ter sido identificado como gay.
Mas se Jô não leu o artigo, o Sr. Hoge certamente o fez e, portanto, sabe muito bem que lá não está dito que eu usei uma saia (grande parte da imprensa brasileira disse isso quando eu e Gil fomos ao Prêmio Sharp usando um sarongue sobre as calças do smoking, e eu não vi razão para protestar); lá está dito que eu uso (wear - é o presente do indicativo, em inglês – dá a idéia de ação habitual ou freqüente) vestidos (dresses) em público e alardeio abertamente minha bissexualidade.
Não importa o espaço que a frase ocupa no corpo da matéria: é inadmissível que um correspondente estrangeiro se dê o direito de ser tão leviano em relação a celebridades nacionais quando se trata de assunto sério. Certamente eu não chiaria se ele tivesse escrito que eu nunca tomo leite (embora isso não seja verdadeiro), mas isso não quer dizer que ele pode publicar, por exemplo, mesmo numa linha pequeníssima em meio a um artigo imenso, que eu matei alguém.
Tampouco está dito no artigo que o paradoxo de nossa atitude face à homossexualidade é equivalente àquele dos americanos, como o Sr. Hoge afirmou no Jô. Diante de defesa tão pouco honesta, inclino-me a não crer nem mesmo nas primeiras palavras que o sr. Hoge disse ao Jô sobre o assunto: que só tinha tomado conhecimento dessa história depois que chegou ao Brasil.
Caetano Veloso.
FOLHA DE S.PAULO, ILUSTRADA, 1993.