Meu Coco (Caetano Veloso)
Simone Raimunda disparou as Luanas
A palavra bunda é o português dos Brasis
As Janaínas todas foi Leila Diniz
Os nomes dizem mais do que o que cada uma diz.
Somos mulatos, híbridos e mamelucos
E muito mais cafuzos do que tudo o mais
O português é um negro dentre as eurolínguas
Superaremos cãimbras, furúnculos, ínguas…
Com Naras, Bethânias e Elis
Faremos mundo feliz
Únicos, vários, iguais:
Rio-Canaveses.
Belém, Natal, Vitória do Espírito Santo
Bomba luminosa sobre o capital
Aquém, além, no seio do bem e do mal
Teimosos e melódicos no nosso canto
Católicos de axé e neopentecostais
Nação grande demais para que alguém engula
Aviso aos navegantes: bandeira da paz
Ninguém mexa jamais, ninguém roce nem bula
João Gilberto falou
E no meu coco ficou
Quem é, quem és e quem sou?:
“Somos chineses”.
Moreno, Zabelê, Amora, Amon, Manhã
Nosso futuro vê açaí guardiã
Ubirajaras mil, carimã, sapoti,
Virá que eu vi, virá, virá, virá que eu vi
Irene ri, rirá, Noel, Caymmi, Ary
Tudo embuarcará na arca de Zumbi e
Zabé.
© 2021 Uns Produções / Sony Music - Álbum Meu Coco - Caetano Veloso.
Comentário do autor: "No princípio era o ritmo. Tchicum-tchicum. Pensava em dança e deixava nomes rolarem na minha cabeça. Os nomes das brasileiras foram desenhando a nossa história. Misteriosa. João Gilberto dizia coisas como poesia nas conversas. Fazer uma canção que mostrasse o que se passa em minha cuca ao ouvir João falar? Verão em Salvador. Visão dos dançarinos do Balé Folclórico da Bahia. Final de 2019. Nem imaginava o que seria 2020. Pensava nos nomes que dei ao meu primeiro filho. E os que contemporâneos meus deram aos deles." (Caetano Veloso para o storyline do Spotify, 2021).
"O número grande de referências a colegas é uma demonstração de que nós somos pluralmente mais luminosos do que a vida que estamos tendo que levar. O disco é de personagens reais, principalmente, da música brasileira. A canção Meu coco é dedicada a Jorge Mautner. À memória da Manhã de Paula, filha de José Agrippino de Paula, que morreu novinha, adolescente, num acidente de automóvel. E também a Mércio Gomes. Porque li o livro dele, 'O Brasil inevitável', que me influenciou muito. Ficou na minha cabeça e aparece em Meu coco. A frase de Mautner ('ou o Brasil se brasilifica ou vira nazista') faz total sentido. A gente está entre uma coisa e outra bem claramente. Por isso Meu coco é dedicada principalmente a ele." (Caetano Veloso para o Jornal O Globo, 2021).
"O refrão ecoa Se todos fossem iguais a você. A batida cortada da primeira parte foi o que me animou a querer gravar novo disco. Quis fazer algo que soasse livre e novo. Ia pesquisar timbres. Conversei muito com meu filho Zeca, que conhece tudo o que rola (e muito da história do que rolou), ele é meu conselheiro. Mas veio a pandemia e tive de ficar parado esperando. A vontade de ser original dominava no nascimento do projeto, antes da pandemia. Depois de um ano, com uma travada na composição nos primeiros meses, pode-se dizer que o que você chama de beleza clássica ficou mesmo disputando espaço com a experimentação." (Caetano Veloso para a IstoÉ, 2021).
"Só o João Gilberto poderia me dizer essa frase ("somos chineses"), e ela se manter tão enigmática quanto quando ela foi dita. Foi quando ele me chamou em 1971 ao Brasil, para vir gravar com ele e Gal. Depois que a gente gravou em São Paulo, viemos para o Rio. Aí, no hotel onde ele estava conversando comigo, falando para caramba, Gal perguntou para João: "Vocês ouviam Chet Baker?". "Ouvíamos, Gracinha. Ouvíamos." "Você gosta?" "Gosto, gosto, mas é muito americano burrão. Americano é muito burrão." Ele falava desse jeito. "Nós somos diferentes, Caîtas. Nós somos chineses." Era uma coisa muito densa, porque tem muita coisa aí. João tinha noção. Ele conversava como se fosse um poeta. Às vezes como um satirista ou um sádico também, dizendo mal de outras pessoas, outros artistas, mestres dele e nossos. Ele podia ser muito mau. Ou muito luminoso. Mesmo quando era mau, era luminoso, porque apresentava com muita graça a deficiência de gênios da música brasileira. Por outro lado, ele falava coisas que eram como que revelações poéticas, porque elas valiam por si. Você não pode traduzir ou meramente explicar. É aquilo. Então, esse "somos chineses" que ele me disse ficou em Meu Coco. É uma canção que tem esse aspecto que você falou. É um samba troncho exaltação. A levada é quebrada. Fizemos eu e Lucas [Nunes] tudo. Lucas tocando baixo e violão. Ele complementou ainda com uma guitarra em cima. Eu tinha pensado em Thiago Amud desde cedo para escrever o arranjo para orquestra. Ele fez brilhantemente, porque ele é um músico incrível. Meu Coco é uma música que rediz algumas coisas que eu venho dizendo ao longo das décadas. Não é uma síntese, é uma cascata de referências rápidas a coisas que eu venho dizendo já em outro patamar, em outro estágio, porque é uma canção que tem um ritmo rápido e muitas palavras. Ela trata principalmente dos nomes que as pessoas dão aos seus filhos no Brasil. Ela até aponta para outra canção que trata só de um nome, o nome mais posto em criança no Brasil em 2019, que é Enzo Gabriel. Ela é uma espécie de samba-exaltação que tem uma gota de autoironia. Meu Coco retoma esse tema da mestiçagem, que de fato aparece na canção Pardo, que está no disco e já foi gravada por Céu. Meu Coco retoma em um tom de exaltação. Como eu estava falando antes, é como se fosse um samba-exaltação, que tem algo de autoirônico na própria forma, no todo, inclusive para que ele não seja um vulnerável samba-exaltação, como tantos outros. Aquarela do Brasil, do Ary Barroso, muitíssimo importantemente, começa por chamar o Brasil de "mulato" logo na abertura: "Brasil, meu Brasil brasileiro, meu mulato inzoneiro". Tem sido ao longo da minha vida o hino nacional brasileiro extraoficial, a música brasileira mais conhecida no mundo, só competindo com "Garota de Ipanema". Essa canção que eu fiz agora, Meu Coco, repete essa exaltação da mestiçagem. Esse "somos mulatos híbridos e mamelucos/ e muito mais cafuzos do que tudo o mais" me veio de um livro que eu li de Mércio Gomes, "O Brasil Inevitável" (Topbooks). Mércio diz que a miscigenação se deu, no fundo, mais entre negros e índios em áreas de pesca. Acho bonito que isso seja um sonho do Mércio ou uma informação sociológica, histórica, precisa. Isso me toca. Porque, na verdade, é um desejo de sublinhar um aspecto da miscigenação que saia do padrão "o senhor branco estupra a escrava negra". Toda a miscigenação seria isso, e tem havido muita discussão em torno disso ao longo do tempo. A gente sabe tudo o que se discutiu sobre "Casa-Grande e Senzala", a reação contra Gilberto Freyre e esse apelido de "democracia racial", que ficou como uma expressão muito atacada. Para mim, não funcionou muito, porque eu acho que a democracia tout court, não a democracia racial, é um mito, mas "o mito é o nada que é tudo". Não é por ser mito que você despreza a ideia de democracia racial. Essa ideia do Brasil como um acontecimento bastante intenso de miscigenação é uma ideia, para mim, muito rica. No livro do Mércio, tem esse negócio do cafuzo, ou seja, de uma liderança negra e indígena na miscigenação maciça do Brasil, por causa dos pequenos aglomerados praieiros ou ribeirinhos ligados à pesca, onde negros e índios se misturaram. Por isso, eu pus "muito mais cafuzos do que tudo o mais" na letra do Meu Coco, entendeu? Eu conheço toda a crítica que se faz à miscigenação e ao mito da democracia racial, mas eu sempre respondi ao longo dos anos que a democracia em si é um mito, nunca realizada em lugar nenhum, e o pouco que se experimenta dela é muito importante. Você ter como horizonte esse mito democrático enriquece a experiência de vida e as forças que se mexem na sociedade. No caso da democracia racial, eu acho que também pode ser vista dessa maneira positiva e não apenas da maneira negativa, um pouco americanizada demais, que cresceu no Brasil nas últimas décadas. Eu respeito muito. Eu acho que o que aconteceu, essa racialização mais americana, enriquece a questão, nos dá mais força para fazer acontecer, e não deve significar uma destruição de tudo o que aconteceu com o Brasil e que pode dizer muito ao mundo. Reaparece na canção Enzo Gabriel como salvação do mundo, o Brasil tendo uma missão de salvar o mundo. Mas aparece de uma maneira meio melancólica na música, que vem quase como um lamento. É como quem está dizendo isso, mas está vivenciando uma grande tristeza. Meu Coco, que é mãe de tudo isso, de Pardo e Enzo Gabriel, tem dentro de si esse reconhecimento da grande tristeza que estamos vivendo. A canção foi feita em 2019. Nós já estávamos nas trevas que se instauraram politicamente no Brasil, em 2018, e sabemos que dificuldades teremos para sair dessas trevas e de atravessar esse período de trevas políticas. Então, a canção poderia ser um pouco vulnerável por parecer otimista, e um otimismo ligado à miscigenação, a coisas que já vinham sendo combatidas por quem tem responsabilidade social e política mais intensa. Isso poderia transformar a canção Meu Coco e tudo que sai dela, o meu disco inteiro, a minha cabeça toda, fazer de tudo isso algo mais vulnerável. No entanto, eu sei que a canção tem uma autoironia violenta e interessante. Eu repito várias coisas que eu disse ao longo das décadas, inclusive terminando por unir, mais uma vez, Zumbi com Zabé, Zumbi com a princesa Isabel. Porque se tem uma coisa com que eu me sinto problemático é com esse desprezo pela figura da princesa Isabel. Eu não gosto disso. Eu acho um empobrecimento da questão da formação da sociedade brasileira de fato. Eu cresci vendo os negros de Santo Amaro e meu pai conosco indo para praça do Mercado, todo ano, celebrar o 13 de Maio. As pessoas cantando em louvor da princesa Isabel e dançando, batidas de candomblé, cânticos, sambas de roda. Ninguém vai arrancar isso de mim." (Caetano Veloso para a Folha de S.Paulo, 2022).
"Ela se deu como uma canção manifesto. Na verdade, comecei pelo ritmo, quis fazer aquela levada, que é meio dura, como se fosse um pedaço de uma célula do samba cortada e repetida. Não é dura, o corte é duro, o resultado não é. Queria fazer essa célula ritmica e encontrar um timbre que desse a ela uma vitalidade moderna e livre, inventiva. E terminei procurando com o Lucas no estúdio, mas, no violão, ela já foi feita assim. Eu queria criar um negócio com esse ritmo e falando de coisas do organismo brasileiro. Então, vieram nomes de mulheres. Comecei por aí e fui entrando em tudo que estivesse na minha cabeça a respeito dessa visão do Brasil miscigenado. De certa forma, é um pouco diferente da cultura de lutas identitárias definidas de grupos. É uma coisa mais ligada à tradição da exaltação de uma miscigenação, da mistura e da variedade vivida mais ou menos anarquicamente pela sociedade brasileira, com sua energia, do que uma submissão às cartilhas identitárias de hoje em dia. Isso pode até causar polêmica, não me incomodo, porque ela é mais assim. Porém, é assim com minha capacidade de ver. E tanto que chega até aquela menção a uma conversa que João Gilberto teve comigo, dentre as muitas que tivemos, na qual ele disse: "Caeta, somos chineses". Era engraçado. [Como a gente entende essa frase?] É dificílimo, é como grande poesia, é óbvio e é dificílimo entender ao mesmo tempo. Tem uma profecia, e ao mesmo tempo uma rebeldia de não se enquadrar no desenvolvimento ocidental estabelecido, ao qual a bossa nova chegou como algo que está na sua área mais elevada. O João chegou lá e é de lá que ele está falando. Então, havia uma rebeldia e também um esboço de profecia. Eu entendo mais com o coração do que com o pensamento. Mas ficou no meu coco, nunca saiu, e apareceu nessa canção. Veio esse negócio do João, e aí "meu coco", aí ficou o título da canção, que veio a ser o título do disco. Depois da base já pronta, cantando a voz guia e já tendo todas as percussões de Márcio Victor, convidei Thiago Amud pra escrever pra orquestra. "Rio Canaveses" é a Carmen Miranda. Carmen Miranda é de Portugal e veio pro Rio. A formação dela é de uma mulher carioca, mas nasceu em Marco de Canaveses. Isso é pra dar o arremate no negócio "com Naras, Bethânias e Elis/ Faremos mundo feliz". Porque é o projeto do Brasil contribuir com algo luminoso ao mundo. Salvar o mundo. Isso é uma das missões possíveis do Brasil e a minha escolhida. Quando eu falo 'Naras, Bethânias e Elis' é porque são cantoras cada uma muito diferente da outra, todas muito importantes na cabeca de quem quer que pense a música popular brasileira. Com esse trio, que abre todo um negócio, faremos um mundo feliz. É a missão do Brasil". (Caetano Veloso para a Revista Noize, 2023).
"Comecei a escrever a música Meu Coco no verão de 2019, na Bahia. No começo era só uma batida rítmica, que eu fazia no violão, imaginando bateria pesada e percussão. Então os nomes de mulheres brasileiras conhecidas vieram até mim. Luana é uma modelo, hoje já uma velha senhora, cujo nome era Simone Raimunda, uma linda negra que veio do bairro Liberdade, em Salvador da Bahia. A partir daí continuei com outros nomes - e isso me levou a pensar no meu gosto por nomes (na década de 1970 gravei um disco chamado Cores, Nomes; agora um amigo me disse, brincando, que Meu Coco poderia ser chamado de Nomes, Nomes". (Caetano Veloso para El Observador, 2023).
"Comecei a sentir vontade de escrever Meu coco por causa da imaginação da batida rítmica. A letra e a melodia surgiram depois, aos poucos. Mencionei nomes de artistas brasileiras, como Maria Bethânia, Nara Leão e Elis Regina, e a lista foi crescendo. Um amigo me disse que esse disco deveria se chamar, parodiando um meu do século passado (Cores, nomes), “Nomes, nomes”. Bom, ao final havia um otimismo em relação ao Brasil que gerava desconfiança, até em mim mesmo, o que me lembra o que ouvi de outro músico brasileiro recentemente. O nome dele é Barão do Pandeiro. Ele disse que, ao contrário do que as pessoas dizem, o Brasil é um sucesso mesmo: chegou exatamente onde trabalhamos tanto para que chegasse: ao atraso. No entanto, escrevi a frase “Nação grande demais para que alguém engula” como uma declaração de princípios". (Caetano Veloso para o El País, 2023).