Você-você (Caetano Veloso)

Depois que nós nos perdemos 
Amor, amor, nossos demos  
Afastam-nos ano a ano
Você-você é teu nome
És quem ressurge e quem some 
Do outro lado do oceano

Eu cá nesta Americáfrica 
Vivo entre miséria a mágica
Não sei dizer o que valho
Tu que és você não em chamas
Tambor, tambor sob as camas
Langor rebaixa-me o galho.

"O orvalho vem caindo"
Não podes negar que é lindo
Requer de nós grande arte
Criar novo mundo louco
É muito e inda é muito pouco
Que aprendas a conjugar-te

Tu és você, sou você
Eu e tu, você e ela 
Ary, Noel, Tom e Chico
Amália, blues, tango e rumba 
Atabaque e bailarico 
Peri, Ceci, Ganga Zumba.

© 2021 Uns Produções / Sony Music - Álbum Meu Coco - Caetano Veloso.

Comentário do autor: "Nasceu do fato de Carminho tirar "você" das letras de canções brasileiras que cantou. Disse primeiro a ela. Suas respostas foram sinceras e pertinentes. "Você", em Portugal, não se usa como tratamento íntimo e amoroso. Impasse: por que então cantar canções brasileiras? Resposta: sentimento intenso mas não podendo sair sincero se digo "você". Ela não queria perder as canções nem cantá-las de modo a sentir-se distanciada. No fim das contas transatlânticas, retomamos o assunto quando fui a Lisboa e isso resultou numa participação dela no disco. Tudo ficou mais lindo quando Carminho cantou." (Caetano Veloso para o storyline do Spotify, 2021).

"A canção nasceu por causa dela [Carminho]. O eu romântico da canção - aquele que diz "eu" na canção, e como todo mundo sabe, essa pessoa não é necessariamente eu - está se dirigindo basicamente a Carminho por ela ter gravado canções brasileiras e evitado a palavra "você". O tratamento "você" não é usual em Portugal, não tem o mesmo peso que tem no Brasil. No Brasil, é o tratamento de mais espontânea e direta intimidade. Não é o caso de Portugal. Eu tive uma conversa com ela sobre isso, meio reclamando, meio perguntando, e ouvi dela respostas muito pertinentes e que justificavam em grande parte a decisão dela de evitar o "você" nas canções brasileiras e, ao mesmo tempo, enriqueceram a minha própria argumentação. Essa canção é um passo a mais no caminho dessa conversa entre eu e Carminho, que, pra mim, é essencial, porque é a conversa entre Brasil e Portugal. Ou seja, uma conversa dentro da história da língua portuguesa. E Paulinha [Lavigne] sugeriu que ela participasse da gravação da canção, que eu já tinha começado a gravar e que se dirige a ela. Curiosamente, depois que a canção já estava pronta e com o título Você-Você, me disseram que o Chico Buarque tem uma canção que chama Você, Você. [Queria que você explicasse e comentasse o trecho: "Tu és você, sou você/ Eu e tu, você e ela/ Ary, Noel, Tom e Chico/ Amália, blues, tango e rumba/ Atabaque e bailarico/ Peri, Ceci, Ganga Zumba"]. Explicar isso é quase impossível, porque é muito denso. No final, a letra fica mais radicalmente poética. "Tu és você" já é a base da nossa discussão, é um resumo da música e da história toda. Quase virou o título para não ficar parecido com o do Chico Buarque. Mas fiquei com pena de gastar essa frase que vem no meio da canção. E, no fundo, eu gostei de ter uma canção com título que é basicamente igual ao de uma canção do Chico. Então, "tu és você" já é uma síntese do negócio todo de "sou você", ou seja, quero que você me chame de "você". Ao mesmo tempo, somos a mesma pessoa porque ambos falamos português. "Eu e tu, você e ela", porque "ela" é a terceira pessoa. E, no fim das contas, depois de dizer "Noel, Ary, Tom e Chico", quatro grandes compositores brasileiros, vem Amália [Rodrigues, cantora portuguesa]. Esse "ela", de uma certa forma, já é Amália. E a Amália não aparece como uma pessoa, aparece como um gênero: "Amália, blues, tango e rumba". É como se Amália fosse o fado, entendeu? E o tema "AméricaÁfrica" volta no final. Depois de "Amália, blues, tango e rumba/ Atabaque e bailarico" - quer dizer, África e Portugal -, vem "Peri, Ceci" - Peri é índio, Ceci é filha de portugueses, é do romance O Guarani, que também virou a ópera brasileira mais conhecida no mundo -, e finalmente "Ganga Zumba", que foi o primeiro líder do maior quilombo na história da escravidão no Brasil. Aí termina a explicação dessa estrofe cheia de coisa". (Caetano Veloso para a Revista Noize, 2023). 

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