Asfixia (2021)
Quando as ruas das cidades dos Estados Unidos foram tomadas pela revolta contra a emblemática imagem de um homem preto sendo sufocado por um policial branco que manteve o joelho sobre seu pescoço até que ele morresse, Candice Feio aparecia na televisão documentando e comentando os atos e a reação policial a eles. Ela enviava imagens e sons pelo smartphone. O assunto em si — o caminho que toma ou pode tomar a história que começa com o tráfico, em navios europeus, de pessoas negras da África para as Américas — tem presença central em minha mente desde que me entendo por gente. Os trechos de reportagem que eram trazidos por Candice se adensavam pelo orgulho de ver essa moça, que conheci adolescente em Porto Alegre (cidade que tem um bairro chamado Tristeza, assim como Candice tem Feio no Carvalho do seu nome), de perceber como as personalidades que nos interessam podem se desenvolver de modo a confirmar o que não arriscamos dizer quando elas apenas prometiam. Repetindo esse padrão, assistir às caminhadas de Candice pelas ruas do Brooklyn dava à alma uma sensação que só se traduz no surgimento deste livro. As imagens e os comentários curtos, as palavras dos cartazes, os sapatos perdidos, as feições de participantes das manifestações, tudo transforma-se num objeto especial - que se identifica com a criação artística, embora não se apresente como obra de arte. De todo modo, é algo que vai além da reportagem ou do artigo, da ilustração fotográfica ou da opinião. Tem alguma coisa do poema, do filme, da confissão pessoal carregada de comoções indescritíveis. O fato de essas explosões de revolta terem surgido justamente quando o mundo tinha entrado no clima impreciso mas totalizante da pandemia do novo coronavírus só aprofunda a visão que Candice apresenta. Os nacos de primavera ao redor da escuridão da estação de metrô, as luzes teimosamente inúteis da Broadway, a expressão facial ilegível do policial branco em meio a manifestantes negros e não negros, o Central Park coalhado de mini-hospitais de campanha, o corpo “I can’t breathe” poema, o modesto autorretrato que assina a jornada; cada imagem, cada palavra, cada olho, cada letra, cada máscara, diz muito sobre estarmos ali com Candice: os EUA e o Brasil como primeiro e segundo em número de mortes por COVID-19; os EUA e o Brasil com suas tão diferentes maneiras de não resolver o problema da formação colonial-escravista. O livro-relato-poesia de Candice nos leva para mais perto da vivência emocional que talvez nos abra os caminhos da verdadeira Abolição.
Caetano Veloso.
Prefácio do Livro “Asfixia NY” (2021) da jornalista Candice Feio.