Devoto e apóstolo (1999)
Será que a imprensa brasileira está pior do que eu imaginava? Alguém que tem raiva de mim, ou de João Gilberto - ou da minha devoção ao gênio de João - vem tentando negar a possibilidade do projeto de um disco dele produzido por mim. Antes de entrarmos em estúdio, já a coluna de Hildegard Angel era usada para a divulgação de mentiras venenosas. Houve pelo menos três notas cheias de informações erradas. Informações que desmenti veementemente, em presença de um jornalista do GLOB0, numa coletiva. E que em seguida os fatos desmentiram com ainda maior veemência. A citada coluna tinha noticiado um impasse na produção do disco afirmando que: a) o produtor executivo Alexandre Agra havia sido despedido; b) Carmela Forsin e Paula Lavigne tinham brigado, e c) a Universal e eu litigiávamos por questões de dinheiro. Na ocasião, respondi com todas as letras que cada uma dessas afirmações era falsa. E poucos dias depois estávamos gravando. Em duas sessões deslumbrantes - que contaram com as presenças de Carmela Forsin, Paula Lavigne e Alexandre Agra – fizemos seis (e nāo dez!) faixas onde o esplendor da arte de João foi captado com precisão por um Moogie Canázio maravilhado. Como é que agora, partindo de uma outra nota da coluna de Hildegard, o Segundo Caderno do GLOBO se apressa a rasgar a foto da minha união com João? A hipótese do "desabamento" do "pilar" de minha veneração por ele pareceu motivar uma festa na redação. Desistam. Este é um pilar inabalável. Nem mesmo João e eu podemos derrubá-lo. Seja como for, eu acho que nossa ligação merece mais respeito. Se eu estou aqui agora rodando a América do Norte, é por causa de João. Em dois sentidos: primeiro porque sem ele nenhum músico brasileiro teria a atenção mundial que temos hoje; depois, porque vejo ser minha missão limpar a área para que a arte de João – que é o essencial da nossa música – seja sempre confirmada e reavivada na memória do mundo. Não há força humana que possa deter o que já foi tão longe. Tudo o que se passar entre mim e João (duetos, silêncio, distância, briga, produção de disco) será sempre para fazer crescer a beleza que irrita quem plantou as notas na Hilde - e o lado mórbido da imprensa que se excita com o conteúdo de tais notas. Pois as últimas palavras que eu disse a João antes de sair do Brasil foram: "Eu sou e serei seu devoto e seu apóstolo". Vocês aí do GLOBO me roubaram horas de descanso no meio de uma turnê pesada. Mas não tem nada não. Quando eu chegar aí de volta, minhas primeiras palavras a João hão de ser: "Vamos fazer as coisas da meIhor maneira possível".
Caetano Veloso.
Jornal O Globo, 12/07/1999.