A máquina de fazer espanhóis (2016)

Os caminhos salgados que separam e unem desde sempre e para sempre portugueses e brasileiros abriram-se de forma inesperada aqui à minha frente quando recebi o convite para prefaciar a nova edição brasileira de a máquina de fazer espanhóis. Que já as tenha havido tantas é demonstração de como cala fundo em corações luso-americanos a fábula de amor sincero e melancolia histórica (e biológica) que move este livro. Em primeiro lugar, impacta-me que, exatamente quando da minha entrada na velhice, chegue-me às mãos o trabalho de um jovem em que a contemplação do inexorável avanço da idade é a motivação de um exercício exuberante de escrita, onde a força da memória vocabular e emocional (força que define um verdadeiro escritor) surge luminosamente. É conhecida a reação entusiástica de José Saramago à escrita de Valter Hugo Mãe: ele viu ali, de dentro de sua lúcida velhice, um "tsunami estilístico, semântico e sintático". Esse comentário me parece a expressão de alguém que flagrou a retomada de procedimentos formais por si inaugurados - a decisão de reduzir a pontuação às vírgulas e aos pontos, deixando ao leitor a percepção das interrogações, das exclamações e dos travessões de passagem da narrativa para o diálogo, assumindo assim o escritor a responsabilidade rítmica e prosódica de guiar quem o lê - que aqui são conduzidos com a vitalidade da juventude. 

A escolha de escrever apenas com letras minúsculas radicaliza o método saramaguiano. Mas não só. É uma característica de muitos textos de vanguarda de minha geração. Evidentemente Mãe não estava inconsciente disso: das notas de contracapa dos discos de Bob Dylan a muito da produção do movimento de poesia concreta, a exclusividade da caixa baixa foi marca de liberdade de muite poetas e missivistas entre o final dos anos 1950 e o final dos anos 1960. Eu próprio escrevi todo o texto de contra capa do primeiro disco tropicalista sem usar maiúsculas - exceto quando, ao referir-me a João Gilberto, grafei "Ele" - e ainda hoje troco cartas (por e-mail) com alguns amigos que só escrevem (e a quem só escrevo) em caixa baixa. Valter Hugo sem dúvida optou pelas minúsculas sabendo de tudo isso - ou de exemplos equivalentes, quem sabe até estando mais avisado de outros antecedentes importantes à moda das minúsculas exclusivas, que foi parte notável do experimentalismo estético/ético/existencial que explodiu no período que, mesmo começando nos anos 1950 e prosseguindo pelos 1970 adentro, aprendemos a chamar "anos 60". É que, dado o uso específico do procedimento, no caso dos livros de Mãe em que não há maiúsculas (além de não haver travessões, pontos de interrogação, aspas ou pontos de exclamação) o que encontramos é uma estrutura geral que faz da radicalização do modo eleito por Saramago um elemento que contribui para a excepcional fluência do seu texto. Uma fluência que faz menção à de Saramago mas que tem motivações próprias. E consequências distintas.

A bem dizer, a máquina de fazer espanhóis não se atém às minúsculas. Nos dois capítulos em que a polícia - a atual e supostamente legítima repressão democrática - entra no Lar da Feliz Idade, os travessões, as maiúsculas, a narrativa em terceira pessoa, os pontos de interrogação e as aspas invadem o livro. Aliás, no capítulo cujo título dá nome ao romance - "A máquina de fazer espanhóis" - as maiúsculas (e todo o seu séquito) estão presentes, como que a gritar o contraste com o título impresso na capa, reforçando o teor rebelde das letras pequenas e, ao mesmo tempo, fazendo pensar duas vezes sobre os capítulos destacados. Toda essa questão formal da arte gráfica e da pontuação está em sintonia com a complexidade dos sentimentos relativos à vida e à política que são o espírito do livro.

Do lado de cá do Atlântico, vivi recentemente um momento que a leitura do romance de Valter Hugo me trouxe uma e outra vez à memória. Em meio à instabilidade social, econômica e política que o Brasil atravessa, uma notícia terrível veio intensificar a angústia de ser brasileiro: uma garota de dezesseis anos foi estuprada por um grupo de homens mais ou menos ligados ao tráfico de drogas que assola as favelas brasileiras desde os anos 1980. Detalhando-se a investigação, chegou-se à certeza de que o ato cruel se deu em dois turnos e em duas casas diferentes. A moça já estava inconsciente na segunda sessão. Eu estava assistindo ao noticiário da televisão que dava conta dos desenvolvimentos dessa macabra história, mas precisei me afastar para resolver assunto imediato. Na volta, deparei-me com a informação de que já se tinha chegado aos primeiros nomes dos perpetradores. Talvez os locutores já tivessem dito alguns nomes antes daquele que ouvi e li primeiro, mas para mim a informação se cristalizou neste: Michel Brasil da Silva. Michel é o prenome do presidente interino que tomou o lugar de Dilma Rousseff quando - e isso tinha acontecido fazia poucos dias - esta foi afastada da presidência por um processo de impeachment para cuja justificação parece que nunca se encontrou crime. Estávamos entre os reacionários e a imprensa, que louvavam tal processo, e os que o consideravam um golpe. Fora um golpe parlamentar e também midiático, só que dando-se como que em câmera lenta, levando o tempo necessário para fingir ser um processo legal. O prenome "Michel" não é comum entre brasileiros: forma francesa do nome do anjo/santo Miguel, sem dúvida nomeia o atual presidente interino devido à sua origem libanesa - e o criminoso favelado por causa da maravilhosa liberalidade com que os brasileiros podem escolher como chamar seus filhos. Assim, o prenome francês surgia ali frisado, fazendo imediatamente pensar no presidente interino que mal (e mesmo mal) chegara ao poder. O primeiro sobrenome de família do criminoso, o que vinha como “nome do meio", era - incrível! - Brasil. E, para rematar, vinha Silva, o mesmo sobrenome de Luiz Inácio, o Lula - contra quem toda a movimentação que levou ao impedimento de Dilma se dirigia -, e que é o nome de família que os brasileiros pensam ser o sobrenome geral da gente do povo (numa das peças teatrais do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, uma canção escrita por Geni Marcondes e Augusto Boal fez grande sucesso e marcou fundamente a cultura brasileira no começo dos anos 1960: "Zé da Silva", o nome sugerindo tratar-se do brasileiro genérico, sendo mesmo o nome geral do povo do Brasil). MICHEL BRASIL DA SILVA. Sendo nós, brasileiros, os da selva selvagem, os propriamente silvícolas, as ironias amargas sobre o grassar de Silvas nas conversas dos velhos de Valter Hugo Mãe - e no ritmo de poesia que este lhes dá - caíram em meus ouvidos como cânticos, ora dolentes, ora sarcásticos, que me levavam a sentir fundo os complicados e misteriosos sentidos que o desenrolar de nosso destino comum - de brasileiros e portugueses, ou, em todo caso, de lusófonos – vai ganhando, sofrendo ou produzindo.

A fortuna crítica e o sucesso abrangente deste romance no Brasil exibem feições comoventes. Momento profundo das relações afetivas entre Brasil e Portugal, a máquina de fazer espanhóis, um livro tão exclusivamente português, com seu linguajar coloquial lusitano e suas referências às intimidades da vivência da história política de Portugal, faz o leitor brasileiro mergulhar na dimensão portuguesa de sua vida, reencontrar origens de tantas das suas fraquezas em face de um grande sonho - e de tantos enternecimentos em face de sinceras modéstias. Faz o leitor brasileiro enriquecer suas perguntas quanto à capacidade de grandeza, à realidade de suas responsabilidades. O romance é um romance que se escolhe pequenino, como o Portugal pequenino do Jacinto de Thormes, que não se esquece dos pequeninos, para expressar a grandeza dos temas da vida e da morte, do amor, do destino histórico de um povo. O Portugal oprimido sob a ditadura de Salazar e o Portugal sob a batuta de austeridade da União Europeia são flagrados nos momentos finais de vidas comuns, mas o homem comum da Tabacaria de Álvaro de Campos, o Esteves sem metafísica, está ali entre eles - e sobrecarregado de metafísica. A grande poesia, que reflete as insuperáveis questões da existência (mas também a singularidade portuguesa do estar no mundo), empresta seu personagem à narrativa sobre velhos que o escritor moço inspirou-se em produzir. Entra como o Quixote no segundo livro. Mas a ênfase não recai sobre a metalinguagem. Antes, a metalinguagem, como as minúsculas, serve ao desvelamento de uma realidade intuída pelo jovem autor. Com sua cabeça clara – que há de perdoar o tom talvez pedante destas palavras com que um cantor de rádio pretende saudar a nova edição do seu livro entre nós - Mãe dá conta dessa complicada tarefa de modo leve. Bastar-me-ia registrar quão comovente é para mim – e suponho que o será para muitos brasileiros - saber que a audição de canções da Legião Urbana contribuiu para a formação da sensibilidade de quem realizou com tanta delicadeza trabalho tão potente.

Caetano Veloso.

Rio de Janeiro, julho de 2016.

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