Conversaciones con Carlos Galilea (2022)
Impossível que alguém tenha um conjunto de entrevistas dadas por mim que produzam uma visão tão completa e articulada de minha vida mental como o que Carlos Galilea reuniu. Ao longo dos anos, em um tom de de sinceridade sem pretensões, o jornalista espanhol arquivou conversas que se converteram em artigos claros, muitos dos quais li em versões impressas na época, mas não imaginava que vê-los reunidos me fosse causar a impressão de retrato histórico do meu tempo através da minha figura pública que este livro causa. Quando nos conhecemos, Galilea já havia se tornado um conhecedor da cultura brasileira. Assim, os diálogos que ele provocava eram sempre os de duas pessoas familiarizadas com os assuntos da história, da política, do comércio e da arte no Brasil. Seu estilo pessoal e profissional propicia um clima em que as referências a autores sérios e análises de conjunturas históricas completas não soam como pedantismo. No ano em que chego aos 80, esses depoimentos descontraídos e fragmentários dão uma perspectiva de meu itinerário pessoal e profissional que inclusive para mim resulta reveladora. E quem quer que tenha sido atraído pela canção popular brasileira, há de encontrar aqui elementos para começar a se aprofundar em seu estudo – ou mesmo qualificar o entendimento que se desenvolve a partir da história moderna da música global. Não que Galilea tenha me levado a analisar peças de composições ou arranjos, exemplos de emissão vocal ou execução de instrumentos (embora não deixe de falar diretamente sobre música), mas prova que estudar o modo como um cantor e compositor brasileiro observou as vicissitudes e lampejos de luz que atravessou em sessenta anos de atividade no setor podem dizer muito sobre o mundo.
A história recente da política e das sociedades aparece comentada de um ponto de vista que enriquece a perspectiva geral. Como entrevistado, no entanto, eu teria algumas informações complementares para acrescentar ao conjunto que Galilea conseguiu organizar. Por exemplo, tornei-me menos anticomunista depois que, motivado por uma introdução escrita pelo jovem blogueiro Jones Manoel para o livro Revolução Africana (uma compilação de textos de Frantz Fanon, Samora Machel, Amilcar Cabral, Agostinho Neto, Thomas Sankara…), cheguei à crítica histórica do liberalismo feita pelo pensador italiano Domenico Losurdo. Este desenvolve uma visão que, no mínimo, nos liberta do pensamento único sobre a democracia liberal e da correspondente equiparação entre fascismo e comunismo. A ênfase na brutalidade da história colonial enfraquece as teses de Hanna Arendt et caterva. Por outro lado (mas não em dissonância com o que foi dito acima), não vejo equivalência entre PSDB e Lula, embora o pesadelo político atual que é o governo Bolsonaro sugira que nos aproximemos disso. Eu posso contar que, quando Lula admitiu que poderia chamar Geraldo Alckmin para ser seu vice-presidente, me pareceu que a harmonia entre o PT e figuras do grupo que pertencia a Fernando Henrique, coisa que hoje já não vejo mais como antes, poderia ser simplesmente aceita por estratégia. Talvez uma colaboração que me pareceu desejável em 2002. Isso me leva a perguntar se não seria mais um sinal de que o retorno de Lula pode conter algo de retorno ao passado. O que, claro, me põe, mais uma vez, em uma posição duvidosa em relação a Lula. Sei que, se as coisas se mantiverem como estão, votarei em Lula (sem a emoção ou as lágrimas com que votei nele em 2001). O fato é que, apesar de Losurdo, sigo pensando que os partidos de esquerda seguem o caminho da hegemonia partidária ao culto da personalidade. Não se pode aprovar a defesa de Ortega feita pelo PT. Volto ao liberalismo que hoje critico? Só se for na perspectiva de Mangabeira Unger, onde se tornam possíveis as reformas revolucionárias.
Hoje eu não tenderia à afirmação da "democracia racial" no mesmo tom que fiz, já que o reconhecimento do racismo à brasileira (que nunca ignorei) me leva mais a me distanciar da crítica feita por Bourdieu e Wacquan a Hanchard que da confrontação com os temas que este abordou, ainda que mal.
Quanto à música, o que o tropicalismo produziu se mantém vibrante em mim. Uma visão do Brasil como uma oportunidade original de iluminação do mundo, mesmo tendo partido de um ato colonial cujas características horrendas são tão visíveis hoje como sempre. Uma imagem do mundo dominado pelo Ocidente, onde os avanços técnicos e científicos hipertrofiam a ideia da espécie humana como um desequilíbrio destruidor. Uma concepção da realidade como inacessível pela razão. Um tempo histórico em que, via Reino Unido e Estados Unidos, a língua inglesa ressoa pelo globo, trazendo uma riqueza de ruídos e delírios de liberdade. Tin Pan Alley, Hollywood, o neo rock inglês, tudo sobreposto à renda gaulesa, ao cinema italiano, à Pelmex, ao Cinema Novo, à bossa nova, levaram-me a mesclar acordes densos suaves com tríades clamorosas, sussurros e uivos, rimas ricas e ritmos vulgares, rimas pobres e atonalidades elegantes - numa caricatura do que Oswald de Andrade (que eu não teria alcançado se não fossem os poetas concretistas de São Paulo dos anos cinqüenta) sugeriu em seu Manifesto Antropófago.
Chego aos 80 com essa organizada confusão em meu coco. Apenas um livro como este traz um relato de como isso se desenvolveu. Não preciso ser modesto para dizer que nem sou um bom músico (como há tantos no Brasil e no mundo). Não sou. Mas modéstia não é o que aflora quando você chega aos 80 e vê um livro como este.
Caetano Veloso.
Bahia, Brasil, janeiro de 2022.
Prólogo do livro "Caetano Veloso - Conversaciones con Carlos Galilea" (2022).
Tradução livre. Abaixo, o texto original em espanhol.
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Imposible que alguien tenga un conjunto de entrevistas dadas por mí que produzcan una visión tan completa y articulada de mi vida mental como el que ha reunido Carlos Galilea. A lo largo de los años, en un tono de sinceridad sin pretensiones, el periodista español entabló conversaciones que se convirtieron en artículos claros, muchos de los cuales leí en versiones impresas en su momento, pero no imaginaba que verlos reunidos me fuese a causar la impresión de retrato histórico de mi tiempo a través de mi figura pública que este libro causa. Cuando nos conocimos, Galilea ya se había vuelto un conocedor de la cultura brasileña. Así, los diálogos que l provocaba eran siempre los de dos personas familiarizadas con los asuntos de la historia, la política, el comercio y el arte en Brasil. Su estilo personal y profesional propicia un clima en el que las referencias a autores serios y los análisis de coyunturas históricas complejas no suenan a pedantería. En el año en que lego a los 80, esos testimonios relajados y fragmentarios dan una perspectiva de mi itinerario personal y profesional que incluso para mí resulta reveladora. Y quienquiera que haya sido atraído por la canción popular brasileña, ha de encontrar aquí elementos para comenzar a profundizar en su estudio -o hasta para matizar el entendimento que desarrolla de la historia moderna de la canción global. No es que Galilea me haya Ilevado a analizar piezas de composiciones o de arreglos, ejemplos de emisión vocal o de ejecución de instrumentos (aunque no se deje de hablar diretamente de música), pero prueba que estudiar el modo en que un cantante-autor brasileño observó las vicisitudes y los destellos luminosos que atravesó en sesenta años de actividad en el sector puede decir mucho sobre el mundo.
La historia reciente de la política y las sociedades aparece comentada desde un punto de vista que enriquece la perspectiva general. Como entrevistado, sin embargo, tendría algunas informaciones complementarias que añadir al conjunto que Galilea logró organizar. Por ejemplo, me volví menos anticomunista después de que, inducido por una introducción escrita por el joven bloguero Jones Manoel para el libro Revolución africana (una recopilación de textos de Frantz Fanon, Samora Machel, Amilcar Cabral, Agostinho Neto, Thomas Sankara…..), Ilegué a la crítica histórica del liberalismo hecha por el pensador italiano Domenico Losurdo. Este desarrolla una visión que, como mínimo, nos libra del pensamento único sobre la democracia liberal y de la correspondiente equiparación de fascismo y comunismo. El énfasis en la brutalidad de la historia colonial debilita las tesis de Hanna Arendt et caterva. Por otro lado (pero no en disonancia con lo dicho arriba), no veo equivalencia entre el PSDB y Lula, aunque la actual pesadilla política que es el gobierno de Bolsonaro sugiera que nos aproximemos a eso. Puedo contar que, cuando Lula admitió que podría llamar a Geraldo Alckmin para ser su vicepresidente, me pareció que la armonía entre el PT y figuras del grupo que era de Fernando Henrique, cosa que hoy ya no veo como antes, pude ser simplemente aceptada por estrategia. Quizás una colaboración que me pareció deseable en 2002. Eso me leva a la pregunta de si no sería una señal más de que el regreso de Lula pude contener algo de regreso al pasado. Lo que, claro, me pone, una vez más, en una posición dudosa respecto a Lula. Sé que, de mantenerse las cosas tal como están, votaré a Lula (sin la emoción ni las lágrimas con que le voté en 2001). E1 hecho es que, a pesar de Losurdo, sigo pensando que los partidos de izquierda siguen el camino de la hegemonía partidaria al culto de la
personalidad. No se pude aprobar la defensa de Ortega hecha por el PT. ¿Vuelvo al liberalismo que hoy critico? Solo si es en la perspectiva de Mangabeira Unger, donde se hagan posibles as reformas revolucionarias.
Hoy no tendería a la afirmación de la «democracia racial» en el mismo tono en que lo hacía, ya que el reconocimiento del racismo a la brasileña (que nunca ignoré) me leva más a apartarme de la crítica hecha por Bourdieu y Wacquan a Hanchard que de la confrontación con los temas que este abordó, aunque mal.
En cuanto a la música, lo que produjo el tropicalismo se mantiene vibrante en mí. Una visión de Brasil como una oportunidad original de iluminación del mundo, incluso habiendo partido de un acto colonial cuyas características horrendas son tan visibles hoy como siempre. Una imagen del mundo dominado por Ocidente, donde los avances técnicos y científicos hipertrofian la idea de la especie humana como un desequilibrio destructor. Una concepción de la realidad como inabordable por la razón. Un tiempo histórico en el que, vía Reino Unido y Estados Unidos, la lengua inglesa resuena en el globo, trayendo una riqueza de ruidos y delirios de libertad. Tin Pan Alley, Hollywood, el neo rock inglés, todo superponiéndose al encaje galo, al cine italiano, a la Pelmex, al Cinema Novo, a la bossa nova, me llevó a mezclar acordes densos suaves con tríadas clamorosas, susurros y aullidos, rimas ricas y ritmos vulgares, rimas pobres y atonalidades elegantes -en una caricatura de lo que Oswald de Andrade (a quien yo no hubiera llegado de no ser por los poetas concretistas del São Paulo de los años cincuenta) sugirió en su Manifesto Antropófago.
Llego a los 80 con esa organizada confusión en mi coco. Solo un libro como este trae un relato de cómo eso se desarrolló. No necesito ser modesto para decir que ni siquiera soy un buen músico (como hay tantos en Brasil y en el mundo). No lo soy. Pero modestia no es lo que aflora cuando llegas a los 80 y ves un libro como este.
Caetano Veloso.
Bahía, Brasil, enero de 2022.