Chico, São Paulo e Bahia (1999)

O show do Chico foi uma das coisas mais maravilhosas que vi nos últimos tempos. Uma das emoções mais inteiras e impressionantes que já tive. Os anos passando, e Chico, como artista maravilhoso, foi sedimentando seu talento. Esse show é uma prova disso. O público chegava no Canecão, sentava, e aí vinha o Chico, desfiando aquelas canções belíssimas, com um roteiro extraordinariamente bem-feito. O show é lindíssimo. É uma catarata de palavras e melodias bem encontradas. Que fluem com uma naturalidade, que tocam em pontos de muita profundidade e beleza. O público fica louco. Chorei quando vi o novo show de Chico.

Eu adoro a música "Carioca". Embora ninguém fale disso, Chico de fato é muito paulista. Ele nasceu no Rio, mas por mim ele é paulista. Eu o conheci em São Paulo, ele cresceu em São Paulo, se educou em São Paulo, o pai dele era paulista, a casa dele era em São Paulo. Ele se mudou para o Rio depois que já era um homem. As canções que fizeram de Chico Buarque o que ele é foram todas compostas em São Paulo. São canções paulistas. Mas ele não toca muito no assunto, ele ficou como carioca e ponto final. E os paulistas, por sua vez, não reivindicam isso. Eu acho isso uma coisa misteriosa! Isso revela muito sobre São Paulo.

Não quero encher o saco do Chico com essa história. Já encho muito o saco dele, normalmente, porque sou muito falastrão e ele é muito calado. Eu falo muito as coisas que penso, e o Chico acha isso um pouco chato. Mas ele gosta de mim. Quando começaram a sair notícias no jornal sobre o disco dele, que não por acaso chama-se As Cidades, li que uma das músicas chamava-se "Carioca". O disco é todo espetacular, mas essa música resume tudo o que penso sobre o trabalho e o show. Quando ouvi "Carioca", percebi que a canção tinha uma levada algo baiana, algo axé. Aquela mistura de marcha-rancho com samba leva para a Bahia.

Vamos voltar no tempo. Quando a Mangueira fez um desfile em homenagem aos baianos (eu, Bethânia, Gal e Gil), a crítica caiu em cima, os jornais meteram o pau na escola, e a Mangueira quase caiu do Grupo Especial. Anos depois a Mangueira homenageou o Chico, e todo mundo achou maravilhoso. Mas os autores do samba eram paulistas, e eu pensei: "Que coisa reveladora!"

Isso tudo tem um significado sutil e profundo para mim. Quando fui ver o show, Chico canta um samba da Mangueira de décadas atrás que diz mais ou menos o mesmo que a música que fiz para agradecer o desfile em nossa homenagem. É uma letra que começa a enaltecer as coisas da Mangueira e termina sempre assim: Até parece que eu estou na Bahia. O Chico incluiu a música no show e... eu chorei. Fechava toda essa história que penso sobre Chico, São Paulo, Rio, enfim... Eu fui até ele e disse: "Chico, eu vi o show pensando o tempo todo que ele tivesse sido feito para mim. Especialmente para mim".

Caetano Veloso.
Depoimento a Cláudio Henrique.
Revista Época, 22 de março de 1999. 

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