Letras (2022)
Diante das mais de trezentas letras de canções que compus ao longo de décadas fico quase sem palavras. Tenho apenas de confessar que em nenhum caso eu aprovei a letra (ou a música) quando cheguei a completá-la. Com o passar do tempo - e o esquecimento das obras -, tenho me surpreendido com alguma admiração e até com certo encanto diante de uma ou outra canção que fiz. As conversas que tive com Eucanaã Ferraz a respeito de como as letras deveriam aparecer sobre o papel (tanto da época da edição de Letra só como agora, quando voltei a atentar para as referentes questões) foram relaxadas. Ele é poeta e amigo. Me lembro de ter imaginado, por muito tempo, um uso da pontuação inspirado em João Cabral de Melo Neto, que põe ponto-final quando termina uma estrofe que corresponde a um parágrafo de prosa - e de um desejo exagerado meu de colocar dois-pontos em passagens que me sugerissem ensaísmo: sou fascinado pela poesia "prosaica" de Cabral e, no fim da adolescência, me maravilhava com a função dos dois-pontos na prosa de Sartre. Mas sei que a distribuição espacial dos versos e das estrofes é pontuação em outro nível. E, sendo minhas letras tantas vezes feitas em canto pensado e não em escrita, me convenci de que a flexibilidade do critério do uso de vírgulas, pontos, pontos e vírgulas e dois-pontos deveria ser admitido, tudo negociado com a intuição de Eucanaã. Espero que o resultado dê prazer ao eventual leitor.
Não deixa de ser para mim uma celebração ver reunidas tantas letras de músicas minhas no ano em que chego aos oitenta. Sou apaixonado pela forma canção, pela palavra cantada, e me sinto honrado em ter um conjunto de peças dessa natureza nas quais chego eu mesmo a ver, às vezes, alguma beleza. Sinto alegria diante desse monte de peças construídas com pouco rigor, apesar de com muito amor.
Passei anos me prometendo escrever uma canção (ou um grupo delas) que redimisse a irresponsabilidade com que me entreguei à função de cancionista. Recentemente tenho mais é me prometido parar de compor, simplesmente para não aumentar o número já grande demais de musiquinhas olvidáveis. No entanto, este livro sai num momento em que descumpri tal promessa. A feitura do repertório do álbum Meu coco foi um irrefreável surto de composição, sendo este um long-play meu em que todas as canções são minhas, letras e músicas, coisa que só tinha acontecido no disco Cê.
Muito de tudo isso se deve a Bethânia e Gal terem me encomendado, sugerido ou inspirado canções. E a meu mestre Gil ter me seduzido para a música. E a meus outros parceiros que me honraram com o casamento de minhas palavras com suas melodias tantas vezes deslumbrantes. E ainda mais aos que construíram (como eventualmente Gil) letras e músicas em colaboração comigo. Elas, eles e eu cultivamos o amor sagrado pelos que nos escutam com dedicação, mesmo que estejamos inevitavelmente entre estes que nos ouvem e leem.
C.V.
Nota do autor para o livro "Letras" - org. Eucanaã Ferraz; editora Companhia das Letras (2022).